A curiosidade (ainda) não matou os cientistas
Tal como o ditado com o gato, a curiosidade empurra os cientistas que exploram os limites do ser humano até ao impensável. Durante três dias, em Darmstadt, na Alemanha, alguns dos mais reputados cientistas da actualidade das mais variadas áreas espreitaram o futuro da medicina e da investigação perante uma audiência de mais de mil pessoas.
Junte-se no mesmo sítio os avanços, actuais perspectivas e principais questões em aberto nas áreas da genética, inteligência artificial, computação, biologia sintética, medicina regenerativa, biomateriais, tecnologia, química e cibernética. Agora, à volta desta mistura de temas (e mais alguns) apresentados por 35 dos mais reputados cientistas da actualidade, entre os quais cinco prémios Nobel e os dois célebres geneticistas (o norte-americano Craig Venter e a francesa Emmanuelle Charpentier) ligados à poderosa ferramenta da edição genética, coloque-se uma plateia de mais de mil pessoas. Deixar ferver em lume brando durante três dias. Esta foi a receita da conferência Curious 2018, organizada a propósito dos 350 anos da empresa farmacêutica Merck, em Darmstadt, na Alemanha. De ouvir e esperar por mais (só no próximo ano).
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Desde experiências com ratinhos ou bactérias que nos podem levar a novas terapias até impressionantes dispositivos médicos como os exosqueletos que ajudam as pessoas a (re)aprender a caminhar, passando pela hipótese de vida no imenso espaço, fora deste planeta, ou pelo mecanismo que comanda a mais ínfima molécula do nosso organismo ou ainda pelo mundo de possibilidades prometido pela inteligência artificial aplicada às ciências da vida. Nada melhor do que espreitar o futuro quando se comemora um passado com 350 anos. Pelo palco da Curious 2018 passaram apresentações que deviam figurar em manuais de comunicação de ciência, algumas bastante complexas que eram temperadas com pitadas de humor de forma inteligente, outras sérias e duras como lições numa sala de aula e ainda outras com surpresas pelo meio, de nos fazer sorrir. Todas para aprendermos algo novo.
Ao som de Edith Piaf
De sublinhar e guardar, por exemplo, o momento em que uma sala em silêncio observava uma sequência de imagens com o resumo da matéria sobre máquinas moleculares apresentada por Fraser Stoddart, professor na Universidade Northwestern, nos EUA, que venceu o Nobel da Química em 2016, ao som de Edith Piaf com “Je ne regrette rien”. O bem-humorado químico e nanoengenheiro escocês com barbas brancas parado em pé no palco e a canção vários minutos em loop para dar espaço a tanto saber. No final, o velho mestre deixava um conselho aos mais jovens: “Façam as coisas à vossa maneira. Ataquem um problema grande. Não sigam modas, saltem fora do caminho que todos estão a percorrer e encarem um grande problema para o qual ainda não existe uma resposta satisfatória da ciência.”
Fraser Stoddart não foi o único prémio Nobel nesta conferência. Também houve lições do biofísico Joachim Frank (prémio Nobel da Química em 2017), do imunologista Bruce Beutler (Nobel da Medicina em 2011), do virologista Harald zur Hausen (Nobel da Medicina em 2008) e do químico Jean-Marie Lehn (Nobel da Química em 1987). A lista de convidados de renome incluía também nomes mais mediáticos, como Craig Venter, o cientista norte-americano pioneiro da investigação sobre genoma humano, que apresentou resultados dos seus esforços na sequenciação do genoma.
O “espectáculo” de Craig Venter acabou por marcar o primeiro dia da conferência, com vários participantes nas palestras seguintes a lembrar o que disse e mostrou. Um dos momentos altos terá sido quando mostrou o que pode acontecer quando juntamos máquinas que aprendem a ler e interpretar o código genético e que conseguem, a partir apenas dessa informação, reproduzir um real e preciso rosto tridimensional de uma pessoa baseado unicamente na genética. Um feito que pode ter tanto de espectacular como de assustador, mas que sobretudo mostra o quanto já aprendemos sobre o genoma humano. Sempre sem esquecer – e apesar de tanto ouvirmos falar nesta conferência e pelo mundo fora de inteligência artificial e máquinas que aprendem a “pensar” – que as máquinas são “ensinadas” e (ainda) comandadas por seres humanos.
“Nenhum monstro foi criado ainda”
Quando se fala de genoma é impossível não pensar numa das mais poderosas ferramentas conhecida como a edição genética, ou tesoura molecular, ou num termo mais técnico para esta tecnologia, a CRISPR Cas9. E neste tema há poucas pessoas no mundo capazes de dar tantas cartas como a francesa Emmanuelle Charpentier que trabalha actualmente no Instituto Max Planck, na Alemanha. A cientista foi “uma das cabeças de cartaz” da Curious 2018 participando (de forma discreta) num debate com outros especialistas de outras áreas de investigação e, no último dia, ocupando sozinha o palco da sala principal, com lotação esgotada.
Emmanuelle Charpentier afastou-se das polémicas, preferindo lembrar como percebeu que as bactérias usavam uma “tesoura” no seu sistema imunitário para se defenderem e como percebeu como esta ferramenta existente na natureza podia ser útil para editar a molécula de ADN. Com uma voz tímida e num inglês com um acentuado sotaque francês, a cientista respondeu por exemplo aos mais recentes receios expressos num artigo da revista Nature Biotecnology sobre a possibilidade de esta técnica de edição causar danos genéticos inesperados que podem levar a alterações perigosas nalgumas células. “Eu não me preocuparia”, disse no palco.
Mais tarde, numa breve conversa com o PÚBLICO, lembrou que não tinha ainda lido o artigo na íntegra mas também sublinhou que os cientistas que trabalham nesta área “sabem o que estão a fazer e são extremamente cuidadosos”. “Julgo que esta tecnologia pode ter aplicações importantes na saúde humana dentro de alguns anos e antes ainda noutras áreas, como, por exemplo, a melhoria das colheitas. Está a avançar em diferentes direcções, com diferentes estratégias, mas não é simples e estamos a avançar com cuidado”, disse, adiantando que acredita que os benefícios para a saúde das pessoas só deverão surgir dentro de “cinco ou dez anos”. Nessa direcção, confirmou sem grande entusiasmo, que há já ensaios clínicos apoiados na tecnologia a decorrer na Europa e nos EUA.
“Esta tecnologia é reconhecida e há várias discussões que são precisamente sobre o facto de assegurarmos que não é usada com os objectivos errados. A CRISPR tem muito boas aplicações e é no lado positivo que estou focada. Há alguns riscos que não gostaríamos de ver em algumas aplicações, mas a CRISPR Cas9 está longe de estar aplicada. Esta tecnologia de qualquer forma ainda não está preparada, por exemplo, para modificações na linha germinal humana e no genoma humano. Todas as aplicações que estão a ser feitas com esta tecnologia são para bons propósitos da humanidade. Nenhum monstro foi criado ainda”, referiu Emmanuelle Charpentier ao PÚBLICO. A investigadora cancelou uma conferência de imprensa com os jornalistas mas aceitou conversar com as poucas pessoas que a abordaram após a sua palestra.
Emmanuelle Charpentier “encontrou” a CRISPR Cas9 enquanto estudava bactérias, mais precisamente o agente patogénico humano Streptococcus pyogenes, e é nesse domínio que continua actualmente. E agora? Está curiosa com quê? “O que seria bom era continuar a olhar para a diversidade do mundo microbial e para os sistemas de defesa imunitária das bactérias e encontrar novos mecanismos que possam ser usados para novos tipos de tecnologias de engenharia genética para somar à caixa de ferramentas”.
Se a Curious 2018 fosse uma casa, as perguntas seriam os tijolos e o que já se conquistou (ou simplesmente se percebeu) seria o cimento, nalguns locais mais frágil do que outros. Até onde podemos ir com o desenvolvimento de fármacos que actuam de forma certeira nas células corrigindo apenas o “erro” que nos põe doentes? E no cancro? Será que vamos conseguir tratar a maioria dos cancros com terapia celular, mais precisamente através da transfusão de células imunitárias manipuladas em laboratório e que reforçam o nosso sistema de defesa? Quando é que isso será uma solução financeiramente viável? Na frente do diagnóstico, será possível um dia fazer qualquer tipo de diagnóstico apenas com uma gota de sangue? Até onde podemos ir no terreno das biópsias líquidas? E será que com tanto esforço acabamos por correr o risco de diagnosticar sinais de uma doença que poderíamos nunca desenvolver?
Será que vamos conseguir acordar nas células a sua capacidade de regenerar prolongando (ainda mais) a nossa esperança de vida? “Há cem anos vivíamos menos 20 ou 30 anos. A nossa esperança de vida está a aumentar. E o genoma humano não mudou. O que mudou foi o ambiente, o que fazemos, os cuidados de saúde, o epigenoma. Temos de nos focar no epigenoma. Se o conseguirmos alterar, podemos abrandar o envelhecimento”, afirmou Juan Carlos Ipziua Belmonte, o cientista espanhol do Instituto Salk, na Califórnia (EUA), que nos anda a prometer o elixir da juventude.
Com os pés bem assentes na terra, Crystal Mackall, especialista em oncologia e hematologia na Universidade de Stanford (EUA), colocou algumas balizas no calendário: “Julgo que estamos muito perto de tratar as doenças monogénicas [causadas pela mutação de um gene]. Estamos muito longe ainda da regeneração de tecidos e gostava de viver para ver a regeneração de órgãos, mas não acredito que vá acontecer durante o meu tempo de vida.” E, perante tantas promessas, David Solit, oncologista e professor no Centro de Cancro Memorial Sloan Kettering, fez a última chamada à realidade: “Sou médico há mais de 20 anos e só curei um doente, um só doente, que tinha um cancro da próstata metastizado.”
Numa apresentação bem mais optimista com o título “Fusão de humanos, robôs e sistemas de informação”, Yoshiyuki Sankai, empresário e investigador na Universidade de Tsukuba, no Japão, mostrou o que os seus impressionantes exosqueletos conseguem fazer. No centro das atenções esteve o dispositivo HAL (Hybrid Assistive Limb) um “fato” robótico que “lê” os sinais do cérebro, detecta com extrema precisão estes sinais na pele e dirige-os para os músculos. Uma “ferramenta” que Yoshiyuki Sankai já usou para “resolver” alguns casos de severas dificuldades motoras causadas por AVC, traumatismo na espinal medula ou doença do nervo craniano como a poliomielite. No final da apresentação ainda houve quem reclamasse por outro tipo de soluções que respondesse também à dificuldade de movimento dos braços. O investigador sorriu e desabafou baixinho: “Vamos passo a passo, a minha vida tem um limite, estou a fazer o meu melhor.”
Grande parte do que se ouviu na Curious 2018 soa a ficção científica, mas é um mundo real de possibilidades. O problema é que, na maioria dos casos, estes cenários estão confinados a ensaios ou projectos de investigação que valem milhões de euros. A questão não é se conseguimos chegar a esta medicina à medida de cada um e tão certeira e precoce mas se, quando lá chegarmos, todos teremos recursos financeiros ou se vamos criar um mundo desigual de oportunidades e acesso. Por outro lado, ficou mais uma vez claro que a resposta – seja ela qual for – para o cancro, doenças genéticas ou infecciosas passará sempre por uma interdisciplinaridade, por juntarmos todos na mesma mesa, desde a inteligência artificial, à ciência mais básica, passando pela prática clínica.
Criado prémio de um milhão de euros
A conferência Curious 2018 decorreu durante três dias, dispersa por um “palco principal”, duas salas mais pequenas e vários espaços de exposição e debate que funcionavam nos intervalos da programação. Um festival da ciência com alguns nomes que soavam a “cabeças de cartaz” e com o esperado anúncio de Stefan Oschmann, director-executivo da Merck, que, com pompa e circunstância, garantiu não só que a conferência deverá repetir-se anualmente como também será acompanhado por um prémio de um milhão de euros a ser atribuído pela primeira vez em 2019 e nos próximos 35 anos.
O prémio Future Insight, da mais antiga empresa farmacêutica do mundo, com 350 anos de história, quer distinguir cientistas que consigam levar a inovação até “produtos de sonho”, capazes de alterar a vida das pessoas de uma forma decisiva, nas categorias da saúde, nutrição e energia.
O desafio para a primeira edição do prémio é encontrar um “protector pandémico”, ou seja, algo que torne possível uma rápida análise de um agente patogénico emergente e que, da mesma forma, consiga gerar uma rápida resposta terapêutica ou de prevenção. O objectivo é ambicioso: ter algo capaz de proteger a humanidade de uma nova pandemia, seja ela qual for. E a ambição promete continuar nos anos seguintes. Em 2020, o prémio atribuirá mais um milhão de euros, desta vez a quem de alguma forma contribuir de forma significativa para resolver o grave problema de saúde pública das multirresistências das bactérias aos antibióticos. Depois, em 2021, a categoria passa a ser nutrição e a chamada aos cientistas de todo o mundo roça a utopia reclamando-se “uma tecnologia que ajude a alimentar a crescente população mundial”. Em 2022, o tema será energia e a Merck também pede uma invenção de sonho chamada “conversor de CO2 em combustível”, um dispositivo capaz de transformar o dióxido de carbono que libertamos para a atmosfera em combustível. Impossível? Ficamos, no mínimo, curiosos.
O PÚBLICO viajou a convite da Merck