Design e demência: cuidar com significado

Comunicar com a pessoa com demência deverá ser um dos principais objectivos de quem cuida sendo crucial que vejamos a pessoa para além do seu diagnóstico, que nos centremos nas possibilidades e não apenas nas perdas.

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Jogo desenvolvido em colaboração com os utentes de um lar, com base nos seus interesses e em temas que lhes eram familiares, tendo sido também convidados a ilustrar o tabuleiro e pinos de jogar DR

Quando ouvimos falar de demência, quando pensamos em demência, referimo-nos sobretudo às perdas a que associamos esta condição: perda de memória, perda de capacidades, perda de autonomia... Recorrentemente, focamo-nos tanto nestas perdas, que por vezes nos esquecemos de agarrar, com força, ao que permanece – a pessoa.

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Quando ouvimos falar de demência, quando pensamos em demência, referimo-nos sobretudo às perdas a que associamos esta condição: perda de memória, perda de capacidades, perda de autonomia... Recorrentemente, focamo-nos tanto nestas perdas, que por vezes nos esquecemos de agarrar, com força, ao que permanece – a pessoa.

A forma como nos entendemos, a nós e aos outros, como nos educamos, dá grande ênfase à racionalidade, à memória, ao saber, muitas vezes descurando, sem querer, as emoções, os sentimentos, o não tangível, o não palpável. Talvez por isso não seja sempre fácil continuar a perceber e a comunicar com a pessoa que continua a existir independentemente do diagnóstico de demência e das mudanças que daí advêm.

Para compreender e para continuarmos a interagir com pessoas com demência, precisamos de as ver, e de nos ver também, como mais do que a soma das nossas memórias e das nossas capacidades. Todos nós nos definimos não só pelo que sabemos e conseguimos fazer, mas também pela forma como sentimos, pela forma como percepcionamos e reagimos ao que nos rodeia, por aquilo de que gostamos e não gostamos, pela forma como nos relacionamos com os outros.

Na verdade, se fizermos um pequeno exercício de autoanálise, quanto de nós vem de outras pessoas que são importantes para nós? Esta é a ideia base da noção de “personhood” (que pode ser traduzido para o português como “individualidade”), que se refere a um sentimento de nós próprios que é relacional, que assenta no nosso contexto social e nas relações que temos com os outros.

Esta visão sobre o que somos ajuda-nos a perceber a importância de nos mantermos em contacto com quem vive com demência. Desta forma, vamos criando oportunidades para que a pessoa se sinta mais ela através desta proximidade, contribuindo para a afirmação da sua identidade e humanidade (ainda que, às vezes, nos seja difícil perceber que, e se, o estamos a fazer).

Comunicar com a pessoa com demência

Comunicar com a pessoa com demência deverá ser um dos principais objectivos de quem cuida sendo crucial que vejamos a pessoa para além do seu diagnóstico, que nos centremos nas possibilidades e não apenas nas perdas, que estejamos atentos às expressões não verbais e de, às vezes, perdermos nós o filtro da racionalidade, do certo e do errado, dando lugar à espontaneidade. É importante fazer o esforço de ler para além das palavras ou atos concretos, de tentar percebê-las do ponto de vista da pessoa com demência, e procurando possíveis revelações de identidade no meio de um discurso ou comportamento aparentemente incoerente.

Numa palestra onde descreve a sua experiência de viver com demência, Christine Bryden sugere “Ajudem-nos a encontrar significado e a afirmar a nossa humanidade ao longo desta viagem do diagnóstico à morte. Nós [pessoas com demência] precisamos de ser envolvidos em atividades que têm significado para nós.”[1] No meio da roda-viva que implica cuidar de alguém, nem sempre temos este cuidado de convidar a pessoa com demência a participar em passatempos que tenham significado para ela. À medida que vai sendo mais difícil relacionarmo-nos, é necessário adaptarmo-nos e procurarmos novas formas de comunicar, novas coisas para fazer, novas formas de fazer as mesmas coisas: com a ajuda de estímulos e pistas verbais e não verbais, visuais e sensoriais, recorrendo a experiências estéticas, que despertem os sentidos, etc...; e é crucial fazê-lo não conforme o que assumimos que é melhor (ou que nos dá mais jeito...), mas de forma mais personalizada.

Design e Personalização na Demência

Numa investigação em que foram explorados o design e a personalização de materiais e atividades para pessoas com demência, demonstrou-se a importância de considerar a pessoa, os seus interesses e a sua história de vida, bem como as suas predileções e idiossincrasias, no desenvolvimento de momentos de lazer e ocupação. Além disso, revelou-se também como mais-valia o envolvimento da pessoa com demência, e dos seus familiares, como colaboradores nesta busca de significado, adaptando o processo de design às suas capacidades, preferências e necessidades [2].

Neste estudo, o contributo do design não consistiu apenas no desenvolvimento de novos produtos, mas foi também a principal forma de indagação, guiado pelos valores das práticas dos cuidados centrados na pessoa com demência, estendendo-se ao desenho de estratégias de inclusão dos participantes no processo investigativo e criativo, e à materialização dos resultados destas colaborações.

O esforço por criar atividades que respeitem, dignifiquem e valorizem a pessoa com demência, que a incluam e com as quais ela se identifique, tem o potencial de proporcionar momentos estimulantes e prazerosos, de aproximação aos outros, antevendo importantes contributos para o bem-estar quer da pessoa com demência, quer dos seus cuidadores.

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Pormenor de uma capa para estimulação sensorial através de diferentes têxteis, que teve em conta a história de vida, preferências e capacidades atuais de uma pessoa com demência, que foi envolvida, bem como a família, no processo de design R. M. Branco

Designer, investigadora do Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura (ID+)

Referências
[1] https://www.youtube.com/watch?v=LdTJ2LIDF4c
[2] Branco, R. M., Quental, J., & Ribeiro, Ó. (2017). Personalised participation: An approach to involve people with dementia and their families in a participatory design project. CoDesign, 13(2), 127–143