Governo quer dar autonomia de gestão aos museus, mas sem número fiscal
O Ministério da Cultura preparou um decreto-lei para dar mais capacidade de decisão aos seus museus e monumentos. Com ele quer combater a burocracia e responsabilizar os directores pelos resultados. Há quem o veja como uma oportunidade e quem ache que não passa de cosmética política. Para que serve a autonomia de gestão sem um número contribuinte?
A ideia de poder decidir a vida de um museu ou de um palácio a cinco anos, anunciando as exposições sem lhes alterar as datas à última da hora, os projectos de investigação a apoiar e as parcerias a estabelecer em Portugal e no estrangeiro, sem passar por um calvário burocrático que chega a pôr em causa empréstimos internacionais ou a deixar uma vitrina às escuras porque os serviços centrais demoram a autorizar a compra de uma lâmpada é, à partida, boa. Assim como é a medida há muito reclamada de afectar a determinado monumento as receitas que ele gera, sem com isso comprometer o princípio de solidariedade que permite a outros em que a despesa supera os ganhos manterem as portas abertas. Por que razão estão, então, alguns directores e associações do património tão preocupados com a proposta de decreto-lei para a autonomia de gestão de museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos em que o Ministério da Cultura trabalhou nos últimos meses e que está desde a passada segunda-feira em consulta mais alargada? Por que defendem que, apesar das boas intenções, o que o diploma oferece fica muito aquém daquilo de que precisam?
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A ideia de poder decidir a vida de um museu ou de um palácio a cinco anos, anunciando as exposições sem lhes alterar as datas à última da hora, os projectos de investigação a apoiar e as parcerias a estabelecer em Portugal e no estrangeiro, sem passar por um calvário burocrático que chega a pôr em causa empréstimos internacionais ou a deixar uma vitrina às escuras porque os serviços centrais demoram a autorizar a compra de uma lâmpada é, à partida, boa. Assim como é a medida há muito reclamada de afectar a determinado monumento as receitas que ele gera, sem com isso comprometer o princípio de solidariedade que permite a outros em que a despesa supera os ganhos manterem as portas abertas. Por que razão estão, então, alguns directores e associações do património tão preocupados com a proposta de decreto-lei para a autonomia de gestão de museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos em que o Ministério da Cultura trabalhou nos últimos meses e que está desde a passada segunda-feira em consulta mais alargada? Por que defendem que, apesar das boas intenções, o que o diploma oferece fica muito aquém daquilo de que precisam?
Em Novembro do ano passado, procurando responder aos pedidos de autonomia de alguns directores, sobretudo o do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), e depois do incidente do “anjo caído” nas Janelas Verdes, o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, anunciou que o seu gabinete ia trabalhar nas bases de um novo instituto para gerir monumentos e museus que iria exigir uma “profunda reforma administrativa” e que, por isso, ficaria para a próxima legislatura. Pouco depois, Castro Mendes voltou atrás afirmando que não haveria instituto, mas que continuava à procura de uma maneira de tornar mais ágil a gestão destes equipamentos culturais. Em Maio, numa visita ao Museu Nacional do Azulejo, o primeiro-ministro António Costa veio dizer que, no âmbito da nova lei da descentralização, a autonomia dos museus avançava mesmo já em 2019.
Por isso, nos últimos dois meses e meio a equipa de Castro Mendes intensificou os trabalhos e produziu uma proposta de decreto-lei com 13 páginas que cria um novo regime jurídico de autonomia de gestão dos museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos (curiosamente não há ainda nenhuma nas listas do novo diploma) sob tutela da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) e das Direcções Regionais de Cultura (DRC).
O documento, que abrange 30 equipamentos (em unidades singulares ou compósitas, agrupando vários serviços dependentes) vai exigir, explica ao PÚBLICO o gabinete jurídico do Ministério da Cultura (MC), uma radiografia muito rigorosa das receitas e despesas de cada museu e monumento e uma “mudança de paradigma” no que toca, naturalmente, à gestão. Objectivos? Desburocratizar processos descentralizando-os, permitir um planeamento estratégico a cinco anos, afectar aos equipamentos a sua receita e assim estimular as equipas, quantificar metas estabelecidas, responsabilizar os directores pelos resultados da instituição (podem ver o seu contrato rescindido ou suspenso, caso não cumpram os objectivos acordados) e limitar-lhes os mandatos a dois (no máximo podem ocupar o cargo dez anos), entre outros.
E como é que isso se faz? De acordo com o MC, tudo assenta numa delegação de competências nos directores dos equipamentos — “algo que já se podia fazer mas que a DGPC e as DRC não têm feito com esta ambição” —, desta vez graças a um contrato-programa plurianual (cinco anos) a celebrar entre estes responsáveis e o órgão central ou regional a que pertencem.
“É mediante a delegação de competências e no quadro dos contratos-programa que os directores poderão autorizar e gerir a despesa, num limite a negociar caso a caso”, diz o gabinete jurídico. Nestas despesas podem incluir-se aquisições de serviços e bens, contratações temporárias e até pequenas empreitadas. Na teoria, essa autorização de despesa pode até superar os 99.700 mil euros (máximo da despesa que, por lei, pode autorizar um director-geral, sem que o ministro nele delegue a possibilidade de dar o aval a um valor superior).
Esta proposta de diploma, discutida com a DGPC, as DRC e com as várias organizações do sector — as delegações portuguesa e europeia do Conselho Internacional de Museus (ICOM, na sigla em inglês), a Associação Portuguesa de Museologia (Apom), e o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) –, assim como com outros especialistas, só na segunda-feira ao início da noite foi enviada, com carácter de urgência, para os directores dos equipamentos, que têm feito chegar as suas reacções ao documento.
O ICOM e a Apom já emitiram os seus pareceres e nele defendem que o documento falha em dar aos museus uma “autonomia real”, levanta questões quanto aos critérios de algumas das escolhas na composição das unidades (nome que agora se dá aos equipamentos, isolados ou agrupados) e quanto à forma como se concilia com outras leis (como despedir directores, por exemplo, e respeitar ao mesmo tempo o que está previsto no Código do Trabalho em Funções Públicas?).
As duas associações estão preocupadas com a possibilidade de ver os cargos de direcção atribuídos a gestores e têm dúvidas quanto à consignação das receitas a cada um dos equipamentos.
"Quando definido o orçamento, analisadas as receitas face às despesas, verificando-se que as receitas cobrem as despesas e as excedem, aplica-se o princípio da solidariedade, ou seja, afecta-se esse excedente a outra unidade cujas receitas sejam insuficientes", precisa o gabinete do MC. "Se durante o ano, as receitas obtidas superarem a previsão mencionada [na definição do orçamento], serão utilizadas pela unidade que as gera. Premeia-se, assim, o esforço de angariação de receita, ao contrário do que acontece actualmente, em que a receita é do todo e gasta pelo todo, sem obedecer a este princípio."
Ainda reféns da burocracia
Foi de António Filipe Pimentel, director do Museu Nacional de Arte Antiga e, por inerência de funções, subdirector-geral do Património, que partiram, no entanto, as mais duras críticas ao documento. Num comentário escrito a que o PÚBLICO teve acesso e que chega a ser maior que o próprio projecto de decreto-lei, o historiador de arte defende que o diploma deixa os museus igualmente reféns de uma estrutura central inoperante e burocrática (a DGPC) e diz, entre outras coisas, que um dos seus principais objectivos é retirar ao MNAA o estatuto histórico de “primeiro museu nacional” que a lei até aqui lhe confere, algo que decorre de uma má relação de trabalho entre o museu e o próprio Ministério da Cultura. A mesma que, garante ainda Pimentel, o manteve à margem da discussão do novo projecto, mesmo sendo subdirector-geral da DGPC (foi entretanto ouvido na sexta-feira).
“Como podem serviços dependentes sem identidade fiscal, mesmo com uma delegação de competências, adquirir (ao que se supõe em nome próprio), bens e serviços, lançar concursos e adjudicar empreitadas, ou gerir fundos europeus, é matéria que transcende a comum imaginação”, escreve num documento em que critica ainda que muito se fale em objectivos “mensuráveis” na hora de avaliar museus e monumentos e nada em “qualificáveis”, “como o deverão ser a qualidade e o rigor do trabalho científico ou pedagógico de uma instituição cultural”.
NIF, a pedra de toque
A inexistência de um Número de Identificação Fiscal (NIF) para cada equipamento faz com que, apesar de poderem autorizar despesa e até desencadear procedimentos administrativos que agora são da responsabilidade da DGPC, os directores careçam da assinatura da directora-geral, Paula Silva, para celebrar qualquer contrato de prestação de serviços ou de aquisição de bens.
Na prática, sem esse NIF, defende José Alberto Ribeiro, director do Palácio Nacional da Ajuda, tudo não passa de uma boa intenção: “Sem um número de contribuinte próprio para o palácio que me permita contratualizar sozinho as despesas, toda esta autonomia é sobretudo teórica. Tenho de esperar pela casa-mãe na mesma, não posso fazer nada.”
O decreto podia ir mais longe no que toca a autonomia, concedendo aos equipamentos o NIF que os seus directores reclamam? “Não no quadro legislativo e financeiro a que estamos obrigados”, explica o gabinete jurídico.
Ribeiro, que é também presidente do ICOM Portugal mas que aqui fala na qualidade de director da Ajuda, tem também muitas dúvidas quanto aos critérios que assistiram à formação das unidades compósitas e quanto à operacionalidade desta autonomia. Preocupa-o, por exemplo, a capacidade de resposta que terá a DGPC, com os seus orçamentos anuais, às solicitações dos museus que passarão a funcionar com programas a cinco anos. Preocupa-o que o MC pareça mais apostado em garantir as competências de gestão dos futuros directores do que as da área da museologia.
Quanto às ‘unidades compósitas’ que o diploma propõe, o director identifica as que decorrem de “critérios geográficos”, como as de Guimarães e Braga, mas tem dificuldade em compreender, por exemplo, a que junta o Museu Nacional dos Coches ao Picadeiro Real (onde funcionava o museu antes do edifício novo abrir): “Porquê tratar agora como dividido o que sempre esteve unido. O novo e o velho museu são uma e a mesma coisa. É por causa da receita? É por causa da importância das colecções? É simplesmente porque são dois edifícios? Não faz sentido.” A não ser que o legislador veja estas “unidades compósitas” como a I Liga e as singulares como a II, como defendeu ao PÚBLICO um funcionário da DGPC que prefere não ser identificado: “Como não se podia deixar os Coches na II Liga, pela receita que tem e pela importância da sua colecção, arranjou-se-lhe companhia. Uma companhia que, aliás, já tinha. O mesmo com o MNAA, que passou a ter a Casa-Museu Anastácio Gonçalves, com quem só tem afinidade nas artes decorativas, já que a pintura é muito mais próxima do [Museu do] Chiado, de que fazia parte até aqui.”
A Ajuda – que tem um arquivo/biblioteca e uma galeria que já tiveram direcções independentes da do palácio – está nesta “II Liga”. “É preciso explicar os critérios de distinção.” Juntar o Museu Nacional de Etnologia ao de Arte Popular na teoria faria sentido, mas na prática Arte Popular tem servido de galeria de exposições temporárias, sem que nem sempre se garanta que há nelas algo de etnográfico (basta pensar dedicada a M. C. Escher, artista gráfico holandês do século XX). “Será que isto significa que Arte Popular tem finalmente um projecto para expor as suas colecções? E que sentido faz juntar [o Museu Nacional de] Arqueologia ao Mosteiro de Jerónimos e à Torre de Belém? É só porque já partilham o edifício e a bilheteira?”
Uma oportunidade
António Carvalho, que dirige Arqueologia há já seis anos, está precisamente entre os que leu a proposta de decreto-lei com mais entusiasmo e que a vê como uma “oportunidade”. Gosta das ideias do contrato-programa (“agrada-me prestar contas públicas, ter objectivos públicos”), da limitação de mandatos do director (“dez anos dá para ver se a receita está boa ou se tem de se mudar”) e do facto de o texto sublinhar que tudo se mantém na Lei-Quadro dos Museus (n.º47/2004) e na Lei de Bases do Património Cultural (n.º 107/2001).
Garante o gabinete jurídico do MC que só a lei orgânica da DGPC terá “retoques cirúrgicos” para permitir a delegação de competências acrescidas de gestão nos directores.
“Olho para esta proposta com um optimismo que é do ponto de vista dos princípios: é bom ter cinco anos para desenvolver um projecto, é bom trabalhar e ver resultados desse trabalho, é bom poder resolver carências de funcionários no âmbito do contrato.” É um “modelo com potencialidades”, diz, mas é preciso “cuidado para não desestruturar o que já existe” e para não “escravizar as equipas aos objectivos”.
Contrariando os directores do MNAA e da Ajuda, que defendem que as equipas não estão à altura das exigências de gestão do novo diploma (como a apresentação de relatórios semestrais e anuais e o acompanhamento de eventuais auditorias do Tribunal de Contas e das Finanças), Carvalho não prevê dificuldades de maior. Se as houver, “resolvem-se com a contratação de serviços de um financeiro [ao abrigo do contrato programa]”, defende o arqueólogo, que diz ainda não compreender a estranheza com que alguns olham para a junção MNA/Jerónimos/Torre de Belém: “É uma questão prática de localização, de bilhética [partilhada desde 2014]. E para o MNA é muito vantajoso. Também não acho que haja uma perda de importância dos museus nacionais que permanecem ‘unidades singulares’. Continuam a ser colecções de referência.”
“Este decreto-lei é muito aberto e, por isso, permite reorganizações e incorporações”, sendo os primeiros cinco anos de vigência o seu “período experimental”, acrescenta ainda o gabinete jurídico. O PÚBLICO quis saber se o Museu das Jóias da Coroa, a criar no Palácio da Ajuda e já em obra, ausente da lista de unidades do novo decreto, ao contrário do do Forte de Peniche, poderá ser uma dessas incorporações: “O Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, em Peniche, está previsto arrancar em 2019 (data em que se prevê o fim das obras), fazendo portanto sentido constar, desde já, neste diploma. O mesmo não acontece com o Museu das Jóias da Coroa (cuja obra só se prevê concluída em 2021). Para além disso, este projecto permite a criação de novas unidades a qualquer momento por despacho do ministro. Entende-se que se deve deixar para essa data a decisão da unidade a criar.”
Da resposta do gabinete não consta qualquer referência ao facto de o protocolo para a criação do novo museu na Ajuda, celebrado entre a DGPC e a Associação de Turismo de Lisboa, prever que a sua gestão é da responsabilidade desta segunda entidade.
O MC pretende, de acordo com o comunicado enviado pelas delegações portuguesa e europeia do ICOM, que o projecto de decreto-lei, ainda aberto a sugestões, seja apresentado em Conselho de Ministros em Novembro e entre em vigor em Janeiro de 2019, sendo, a partir daí, abertos concursos para todas as direcções destes equipamentos da DGPC e das DRC no prazo de 90 dias.