“Emigramos e nunca sabemos se é bom ou mau voltar”

Deixaram o interior do país entre a Guarda e Castelo Branco para tentar novas vidas na França, Suíça, Inglaterra. Isaura e Luís Adolfo foram emigrantes em França. Um dia decidiram começar de novo na Beira Alta. Antoine regressou em pouco tempo. Os três têm projectos que dão emprego às pessoas e vida à região. Primeira de uma série de quatro reportagens sobre a emigração

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O gosto pela aventura levou o pai de Isaura Ferreira para França. O amor às origens trouxe o seu marido de volta a Portugal. Foram quarenta anos certinhos da vida de Isaura, que partiu com três anos em 1960. Voltou em 2000. “Vim começar aqui um novo século." Conta como foi e quase sempre sorri. 

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O gosto pela aventura levou o pai de Isaura Ferreira para França. O amor às origens trouxe o seu marido de volta a Portugal. Foram quarenta anos certinhos da vida de Isaura, que partiu com três anos em 1960. Voltou em 2000. “Vim começar aqui um novo século." Conta como foi e quase sempre sorri. 

O trabalho e o negócio em França corriam bem. O marido começou a fazer reposição das prateleiras no supermercado Carrefour, enquanto estudava. Chegou a empregado a tempo inteiro em 1986 e mais tarde a responsável pela abertura de uma nova loja em Créteil. Anos depois comprou um café, e depois outro, e outro. Até que brotou aquele sentimento que “a gente não sabe explicar”, diz Isaura. “Uma nostalgia” que ela escutou mas não sentiu de forma a partilhar. 

"Deu aquela saudade ao meu marido e ele começou a pensar que era chegada a hora de voltar para casa, depois de termos trabalhado muito. Se fosse pela razão, pelo dinheiro, teríamos ficado lá. Mas foi pelo coração.” Resultado? "Voltar foi um choque." 

Todos os anos, nas férias da família passadas em Portugal, o marido de Isaura ia criando uma imagem idealizada do que seria a vida em Portugal. Ela, pelo seu lado, sentia-se bem em Val de Marne, região de Paris onde viviam. Exerceu funções de secretária de direcção em três empresas, frequentou cursos de formação, e evoluiu na profissão. “Até onde quisemos estudar, estudámos", conta.

"Sou o que sou porque fui criada lá" 

“Aqui fiquei parada no tempo.” Ou assim pensou quando chegou. Em 2003, Isaura e Luís Adolfo criaram de raiz em Belmonte, o supermercado SuperBelmonte que ficou integrado na rede Minipreço, embora com produtos frescos, talho e peixaria próprios. O negócio replicou-se com a abertura de mais uma loja na vila do Teixoso, no concelho da Covilhã. Isaura orgulha-se de dar emprego a mais de 20 pessoas nos dois estabelecimentos. 

Na aldeia do marido, Carvalhal Formoso, construíram uma grande casa, com um grande jardim num grande terreno. Olham a Serra da Estrela para lá do muro e das casas da aldeia e seus habitantes que já não os reconhecem ou compreendem, lamenta Isaura. Em França, ela percorreu um caminho de trabalho dedicado e árduo que a leva a sentir-se realizada e distante da realidade da terra. “Algures em mim, eu tenho uma parte deles. Eu sou o que sou porque fui criada lá." 

Ao mesmo tempo, convivia, frequentava cafés e restaurantes, ia ao teatro e ao cinema. Fez amizades. "Eu sou portuguesa, e nunca me senti estrangeira em França. Sempre estive muito inserida na cultura francesa. A pessoa não pode ter só de um país aquilo que ele nos dá, sem nós nos inserirmos nele e fazermos parte da vida do país."

Nos anos 1950, os seus pais passaram por muitas dificuldades em Portugal para criarem os filhos. O pai de Isaura foi primeiro. Seis meses depois veio buscar a mulher e os seis filhos. Em França nasceram mais dois filhos.

Os pais “trabalhavam muito e não gastavam um tostão", lembra. “Aquilo era de partir o coração. Nas férias, vínhamos os oito irmãos, muito encolhidos lá atrás na carrinha, durante três dias e três noites. Só o meu pai dormia num colchão que estendia no chão.”

Isaura fala perfeitamente o português. A mãe ensinou os oito filhos a ler e a escrever a língua, em casa. Veio para Portugal com 43 anos. “Se tivéssemos netos, naquela altura, não teríamos regressado. Acontece com muitos casais cujos filhos fizeram por lá a sua vida.” 

As filhas Carolina e Sylvie escolheram regressar com os maridos (um deles francês e o outro do Carvalhal Formoso). Todos vivem e trabalham em Lisboa e os filhos, nascidos lá, estudam no Liceu Francês. 

Um caminho diferente seguiu Sandra Gonzague, 34 anos, que passa apenas as férias em família em Vale de Espinho e não considera algum dia viver em Portugal. Quer para os filhos, o que não teve para si: aprender o português. "Eu teria gostado", diz em francês. Mas em casa não falavam português e na escola, não havia, como há agora, a escolha do ensino do português como língua estrangeira, no qual a filha de oito anos já está inscrita. 

"À espera do mês de Agosto" 

Como Sandra Gonzague, também Christine e Sandra Bicho cresceram, formaram-se, casaram e tiveram os filhos em França. Não falam português e não imaginam o futuro em Portugal. “Logo se vê”, dizem, não excluindo por completo a hipótese mesmo que agora se lhes apresente longínqua. Aproveitam o tempo de férias, o espaço do campo da bola de Vale de Espinho e o ar quente do anoitecer na aldeia dos meses de Julho e Agosto das suas infâncias. 

Nesse tempo, as pessoas vinham de carro e iam ficando, ou deixavam os netos com os avós, recorda Antoine Tavares. “Agora vêm com dias marcados.” Vêm uma ou duas semanas. Só algumas ficam o mês inteiro. 

A meio de Julho, as aldeias ainda vazias preparam-se para a enchente de Agosto nostálgicas do tempo em que ter pessoas nas ruas não dependia do mês do ano. Olhando em volta para o que construiu no meio da natureza, Antoine Tavares suspira: “O ano todo à espera do mês de Agosto.” É dono do Trutalcôa, um conhecido restaurante e viveiro de trutas em Quadrazais, no concelho do Sabugal, que abriu em 2005.

Na lagoa do rio Côa, Antoine organiza actividades de pesca para escolas e famílias, num cenário natural alheio na aparência a inquietudes ou lamentos. Porém, o vazio no interior profundo do país colado a Espanha leva-o por vezes a duvidar. “Nunca sabemos se é bom ou mau voltar.”

Casado aos 21 anos, Antoine Tavares emigrou com a mulher para a Suíça. “Nós fazíamos a vida de lá, falávamos bem francês. Fizemos muitos amigos. Frequentávamos restaurantes, discotecas”, recorda com um sorriso e um copo na mão. Mas voltaram seis meses depois porque a mulher esperava o primeiro filho e escolheram fazer a vida em Portugal. 

“Dava para perceber que outros estavam sozinhos, trabalhavam e mandavam o dinheiro para Portugal”, recorda. Viviam entre a casa e o trabalho. "Na emigração considera-se que ir ao restaurante ou ao café é um luxo”, diz Antoine Tavares. 

Agora com 60 anos, recorda esses tempos em que na aldeia dos Fóios só se viam carros nos meses de Julho e Agosto. “Então os Renault e os Peugeot enchiam as praças e os seus donos referiam-se a eles só pelas marcas”, conta divertido.

A França era o destino de muitos, como foi o dos seus pais. Começaram por levar os filhos para França, mas vieram trazê-los a Portugal quando Antoine e o irmão tinham seis e oito anos. Os pais não queriam que se afeiçoassem a um país de onde não iriam querer regressar mais tarde. “Para nós garotos, não foi muito difícil. Ficámos entregues aos nossos avós e familiares.” 

Antoine foi vendo como as aldeias na fronteira entre Guarda e Castelo Branco se esvaziaram com a emigração, primeiro nessa década de 1960 quando (quase) todos tinham um destino; e mais tarde, com o início da crise económica de 2011. 

Antoine tem dois filhos adultos a viver na aldeia, um dos quais trabalha na câmara do Sabugal. A filha, que concluiu os estudos em 2010, não encontrou trabalho numa creche ou escola como educadora de infância. Como tantos outros jovens, tentou a sorte lá fora. Hoje trabalha numa creche em Carcassonne, perto de Toulouse, no sul da França.

Também por essa altura, a sobrinha, que tirou o curso de Comunicação, não arranjou emprego; tentou depois o curso de Moda e partiu com uma amiga para Inglaterra onde as duas abriram uma loja. E o filho de um primo, formado em Ciências Biomédicas e ligado à investigação, “chegou a adulto e emigrou”. Os jovens saíram para o estrangeiro ou deixaram a aldeia para completarem os estudos nas cidades – Coimbra, Braga, Lisboa, Porto.

"Ao contrário dos pais, vão para fora com formação. Apresentam-se como expatriados e não emigrantes", diz São José Marques, coordenadora do Gabinete de Apoio ao Emigrante de Belmonte que partilha o escritório com o centro de emprego desta vila do distrito de Castelo Branco. 

Da confecção ao turismo

Durante muito tempo houve filas de pessoas à procura de trabalho, quando agora há falta de pessoas para trabalhar. Havia fábricas de confecção que davam trabalho a centenas de pessoas, quando agora, vivemos sobretudo do turismo, diz Inês Saraiva, técnica do Gabinete de Inserção de Emprego de Belmonte. Há vagas – para cozinheiros, ajudantes de cozinha ou padeiros – que continuam por preencher. “Há ofertas de trabalho no concelho mas não temos gente para encaminhar para as entidades que procuram”, acrescenta.

A escola de Belmonte vive em risco permanente de ver encerrada a parte do secundário que mantém apenas uma turma há vários anos.“Há muitos alunos a quererem sair no 9º ano para cursos técnico profissionais ou para sair daqui”, diz São José Marques, que também é presidente da associação de pais do Agrupamento de Escolas Pedro Álvares Cabral. 

Dois cursos técnico-profissionais foram entretanto criados para proporcionar uma oferta mais abrangente. São José Marques mostra a mesma satisfação ao descrever o que de novo passou a haver na terra: uma loja do cidadão, vários supermercados, museus e ainda uma ou outra fábrica que começam a surgir depois das grandes fábricas de confecção terem fechado há 15 anos. Nessa altura, houve pessoas com 50 anos a tentar emigrar pela segunda vez. Outras a procurar trabalho no estrangeiro pela primeira vez. Dá o exemplo de um “grande empresário quando a sua fábrica entrou em decadência”.

“Belmonte já foi uma aldeia fantasma”, recorda sobre esse tempo, antes de acrescentar optimista: “De há cinco anos para cá, há pessoas novas com filhos. Pessoas a idealizarem uma vida aqui no interior.”