Marchionne, a Itália e os Agnelli
O italo-canadiano Sergio Marchionne, que morreu esta semana, virou a velha Fiat do avesso. Para mudar uma empresa à beira da falência e uma mentalidade do século passado, exigia-se um revolucionário.
1. Sergio Marchionne (1952-2018), “o homem que arrastou a Fiat para o futuro” ou “o revolucionário que a Itália não quis compreender”, morreu na quarta-feira. Era o CEO da Fiat Chrysler Automobile (FCA), da Ferrari e da CNH (tractores, camiões e maquinaria pesada). Quando entrou na Fiat, em meados de 2003, encontrou uma empresa obsoleta e em vias de falência. Não tinha experiência no sector automóvel. Tinha ideias e capacidade de liderança. Assumiu o cargo de administrador delegado (CEO) no dia 1 de Junho de 2004, logo a seguir à morte de Humberto Agnelli. Remodelou a empresa de alto abaixo. Modernizou e internacionalizou o grupo. Revolucionou a gestão. “Muitos, da velha guarda, consideravam-no um marciano”, diz um antigo colaborador. Até ao dia da sua morte, o capital do grupo valorizou-se 1000 por cento. Depois de ter cumprido a meta “dívida zero”, a FCA planeia lançar 25 novos modelos até 2022.
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1. Sergio Marchionne (1952-2018), “o homem que arrastou a Fiat para o futuro” ou “o revolucionário que a Itália não quis compreender”, morreu na quarta-feira. Era o CEO da Fiat Chrysler Automobile (FCA), da Ferrari e da CNH (tractores, camiões e maquinaria pesada). Quando entrou na Fiat, em meados de 2003, encontrou uma empresa obsoleta e em vias de falência. Não tinha experiência no sector automóvel. Tinha ideias e capacidade de liderança. Assumiu o cargo de administrador delegado (CEO) no dia 1 de Junho de 2004, logo a seguir à morte de Humberto Agnelli. Remodelou a empresa de alto abaixo. Modernizou e internacionalizou o grupo. Revolucionou a gestão. “Muitos, da velha guarda, consideravam-no um marciano”, diz um antigo colaborador. Até ao dia da sua morte, o capital do grupo valorizou-se 1000 por cento. Depois de ter cumprido a meta “dívida zero”, a FCA planeia lançar 25 novos modelos até 2022.
A “jóia da coroa” da indústria italiana sobreviveu transformando-se em “Fiat global” — a FCA. Nem italiana nem americana. Marchionne teve o pleno apoio de John Elkann (na foto, à esquerda, com Marchionne), o jovem herdeiro designado por Gianni Agnelli e rosto da modernização da Fiat.
Os obituários de Marchionne já foram escritos. Lembre-se apenas que nasceu nos Abruzos, filho de um carabineiro e emigrou com os pais para o Canadá aos 13 anos. Estudou Filosofia, Direito e Economia. Quando entrou para a Fiat, era o CEO da SGS, a maior empresa mundial de certificação, sediada na Suíça.
Resta fazer algumas notas sobre a via que ele traçou.
2. Começo pelo economista Fabiano Schivardi, que conhece bem o sector automóvel. “Marchionne virou do avesso a velha Fiat como uma luva. Chegado a uma empresa tecnicamente falida e a meio da difícil passagem geracional, fez uma limpeza das práticas de gestão envelhecidas e da relação com o Estado baseada na troca subsídios-emprego. Estas características funcionavam no mercado relativamente protegido do pós-guerra. Mas, com um Estado menos interventivo nos anos 1990, tornaram-se uma pedra ao pescoço no plano competitivo. Para mudar uma mentalidade tão radicada exigia-se um revolucionário. O mérito dos proprietários [os Agnelli] foi terem descoberto Marchionne.” O desafio da globalização só pode ser vencido, se assumido aberta e plenamente, era esta a sua filosofia.
Deve acrescentar-se uma outra máxima do italo-canadiano: “Existe um mundo em que as pessoas não deixam que as coisas aconteçam. Fazem-nas acontecer, não metem os sonhos na gaveta, mantêm-nos firmemente na mão.”
3. Um ponto fulcral para uma empresa que queria competir nos mercados internacionais era a mudança dos rígidos contratos de trabalho. Não estavam em jogo os salários, factor secundário no sector automóvel, mas a organização e a flexibilização do trabalho. O ano de 2010 assistiu a uma longa batalha entre Marchionne e a federação metalúrgica FIOM, primeiro na fábrica de Pomigliano d’Arco (Campânia) e depois em Mirafiori (Turim). Apoiado pelas centrais reformistas, CISL e UIL, o novo acordo de empresa foi aprovado pelos operários em referendo. A FIOM perdeu muita da sua influência. A outra “baixa” foi a Confindustria, a confederação patronal, que defendia o status quo, dizendo que o italo-canadiano não conhecia a Itália.
Este braço-de-ferro acontece logo após a aquisição da Chrysler. “O problema é que [os sindicatos] americanos fizeram este acordo na condição de trabalharem em perfeita igualdade e transparência entre Itália e América.”
Disse na altura Marchionne aos jornalistas: “Vós falais de mim, de Elkann, dos Agnelli, mas a Fiat significa antes de mais dezenas de milhares de postos de trabalho e de accionistas.” Quando foi nomeado, visitou todos os estabelecimentos fabris e escandalizou-se. “Como podem pedir produtividade a operários que trabalham nestas condições?” E, quando numa assembleia geral dos industriais de Turim, disse que se a Fiat andava mal não era por causa dos operários e dos custos de trabalho, deixou perplexos os empresários. “Os colarinhos azuis é que pagam os erros dos colarinhos brancos.”
O jornalista Ernesto Audí, que dirigiu o La Stampa e trabalhou na Fiat com Marchionne, testemunhou um encontro entre o gestor e Fausto Bertonotti, então líder da Refundação Comunista e presidente da Câmara dos Deputados. Não falavam a mesma linguagem. “O verdadeiro revolucionário era Marchionne, que propunha uma estrada inovadora para a indústria e a sociedade italianas, enquanto Bertinotti parecia ancorado nos estereótipos do passado.” Pomigliano d’Arco provocou um debate passional entre intelectuais italianos. Hoje, a grande maioria dos críticos de então homenageia a memória de Marchionne.
Diz-se: “Marchionne reformou a Fiat, mas não conseguiu mudar a Itália.” O país rejeitou a filosofia de Marchionne, reconhece Schivardi. “Não creio que o seu objectivo fosse modernizar a Itália: interessava-lhe relançar a Fiat. Mas, certamente, esperava que o seu projecto se tornasse contagioso. Daí o espanto, e depois a amargura, perante as críticas contra a sua gestão. (...) Na Itália, é maioritária a quota de pessoas que pensam que o desafio da globalização se pode resolver por decreto.”
A economia italiana permanece estagnada e perde regularmente competitividade.
4. E os Agnelli? Estão contentes com a FCA. Mas a “velha Fiat” desapareceu. A maioria dos quase 200 membros da família já não vive em Turim. Dos “grandes” restam John Elkann e Andrea Agnelli, presidente da Juventus, por “inerência de funções”. Elkann acelerou a diversificação dos investimentos da família. A FCA é cada vez menos italiana. Tem a sede social na Holanda e sede fiscal em Londres. A sua facturação na Itália equivale a menos de dez por cento do total. A luta é por manter a produção de alta tecnologia na península e garantir os empregos. Mas a expansão será sempre no exterior.
A FCA precisa de crescer. É o sétimo produtor mundial. Tem a Ásia por conquistar. Os Agnelli blindaram o controlo do grupo. Mas isto não quer dizer que serão os eternos patrões da “Fiat”. A FCA tornou-se muito “apetecível”. Há grupos asiáticos que manifestam interesse por ela. Crescer significa aliança ou fusão. Os Agnelli farão o balanço entre o prestígio e os interesses.