O cerrado sabe a pequi, a baru, a jabuticaba, a buriti
Uma nova geração de cozinheiros goianos está a resgatar ingredientes e receitas tradicionais
Ainda mal tínhamos saído do aeroporto de Goiânia, a capital do estado brasileiro de Goiás, e já Márcia Pinchemel nos passava para as mãos um saquinho de castanha de baru, um doce de buriti e outro de jabuticaba, ansiosa por falar dos frutos do cerrado, a sua grande paixão e o centro do seu trabalho como chef de cozinha. A nossa visita a Goiânia é precisamente para descobrir a gastronomia desta região brasileira, onde domina o bioma do cerrado, paisagem quente e seca, de arbustos e árvores baixas, de troncos retorcidos.
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Ainda mal tínhamos saído do aeroporto de Goiânia, a capital do estado brasileiro de Goiás, e já Márcia Pinchemel nos passava para as mãos um saquinho de castanha de baru, um doce de buriti e outro de jabuticaba, ansiosa por falar dos frutos do cerrado, a sua grande paixão e o centro do seu trabalho como chef de cozinha. A nossa visita a Goiânia é precisamente para descobrir a gastronomia desta região brasileira, onde domina o bioma do cerrado, paisagem quente e seca, de arbustos e árvores baixas, de troncos retorcidos.
“Nem tudo o que é torto é errado. Veja as pernas do Garrincha e as árvores do cerrado”, diz o poeta Nicolas Behr. Márcia confirma: está tudo certo com as árvores do cerrado e os frutos que elas dão. Pode, como acontece com a castanha de baru, ser difícil chegar até eles, ou podem, como o pequi, dividir opiniões entre os que adoram e os que odeiam — mas não deixam ninguém indiferente. E, desde há alguns anos, começam a ser redescobertos e revalorizados na nova cozinha goiana por pessoas como Márcia ou os chefs Humberto Marra e André Barros, que serão outros dos nossos anfitriões.
“Ainda somos poucos a levantar a bandeira da comida goiana”, diz Humberto, chef no restaurante Coralina, do Hotel Mercure Goiânia. “Apostamos no regionalismo, por isso temos no café da manhã e no cardápio do almoço e do jantar muitos items goianos, que não havia antes.” Assim, a pouco e pouco, vão entrando nos restaurantes e na alta cozinha os produtos que, afinal, se vendem na feira ali mesmo ao lado: frutas como o cajá-manga (“fruta de quintal, que há uns anos ninguém valorizava”), de sabor ao mesmo tempo ácido e doce, ou o tamarindo, o biscoito de queijo goiano, feito com polvilho, ou a “Chica Doida”, prato tradicional de milho com linguiça e queijo.
Seguimos Humberto até à feira, onde se vende de tudo, dos pratos e cafeteiras de esmalte à “pera portuguesa”, passando por legumes como o maxixe, deliciosos abacaxis, farinhas de milho e de mandioca de vários tipos, queijos fantásticos — “Goiânia inteira conhece a banca da Maria. Tem queijo de trança?”, apresenta Humberto — doce de leite “feito em casa no tachão de cobre”, garante Maria, goiabada “com muita goiaba e pouco açúcar”, geleia de mocotó (tendões) de vaca com açúcar.
Uma mulher passa por nós e diz como gosta da fruta de quintal. Conta que, quando era pequena, chupava a manga da árvore e deixava pendurado o caroço. Humberto ocupa-se das compras para o almoço que vai preparar no dia seguinte, saladas frescas para acompanhar os peixes fumados que Ana Maria Rosa faz na sua casa, num forno a lenha, alimentado a mogno branco e ao cheiroso pau-brasil (iremos provar tilápia, tucunaré, caranha, surubim, tudo peixes de rio, enquanto Ana Maria nos conta como se lançou nesta aventura, deixando-se encantar com a arte do fumeiro).
Ainda na feira, paramos junto à banca de Pelé, que vende guariroba, uma espécie de palmito amargo, muito popular por aqui. Mais à frente, já com as compras feitas, Humberto senta-se a comer um pastel de carne com guariroba e a beber uma garapa (o caldo da cana-de-açúcar com limão). “Goiano come muito simples, tem só três temperinhos na nossa comida, quatro no máximo: alho, cebola, uma pimentinha de cheiro, uma pimenta do reino, açafrão às vezes”, diz Humberto. “Isso valoriza o sabor do alimento. Goiás é o melhor lugar do mundo para comer uma fruta, um milho, uma carne de porco. Mas eu, que cresci nos anos 1980, morria de vergonha de ser goiano. A terra é vermelha e a árvore é torcida. Precisei de uns 20 anos para começar a dar valor, hoje sou um apaixonado.”
Acredita que a próxima tradição culinária que vai explodir no Brasil será precisamente a desta região. “Durante muito tempo, a gente ficou meio esquecido, achando que éramos o patinho feio da história. Por isso, o nosso ingrediente, a nossa forma de fazer, os nossos instrumentos de cozinha, o nosso linguajar de culinária, são totalmente desconhecidos. Sabe o que é lampinar? É o corte da guariroba. Temos uma forma de cortar os legumes que interfere no sabor, é diferente dos cortes simétricos e milimétricos da escola francesa.”
Para se conhecer esta cozinha, o melhor é começar por uma paixão nacional: a pamonha. Por isso, na companhia de Márcia Pinchemel, vamos ao restaurante Pamonha 85 provar esta especialidade feita de milho. No exterior, um homem corta as maçarocas do milho que são depois raladas, resultando numa pasta com a qual se recheia as próprias palhas do milho, num embrulhinho que vai a cozer. Simples ou recheadas com linguiça ou com queijo, as pamonhas são deliciosas, acompanhadas por um bom copo de café.
Esta é uma comida das fazendas — e fazendas é coisa que não falta no estado de Goiás. Dia de matar o leitão ou de vacinar o gado é um bom pretexto para juntar toda a gente e fazer uma pamonhada, um prato de origem indígena adoptado pelos brancos, os bandeirantes que no século XVII começaram a chegar aos sertões do interior em busca de metais preciosos. Se, nas primeiras viagens, eles levavam feijão tropeiro e carne seca, mais tarde começaram a plantar feijão, arroz, milho e a criar animais como porcos e galinhas, recorda um artigo do jornal O Popular.
Talvez o melhor local para descobrir muita desta comida caseira, feita como as mães e as avós sempre fizeram, seja o restaurante Popular, onde há 41 anos Maria de Lourdes Barreto serve centenas de refeições por dia. O Popular é uma festa, com os tachos ao lume no buffet, todos a largar aromas irresistíveis, e Maria de Lurdes a vigiar, chamando a atenção para um que está a terminar, controlando o recipiente de cobre onde está a ser feita a ambrosia, dando dois dedos de conversa aqui e ali.
No dia em que lá vamos almoçar não tem pequi (não estamos na época), mas promete que se voltarmos no dia seguinte, terá — não podemos é deixar Goiânia sem provar o mais emblemático dos frutos do cerrado. A experiência é uma espécie de teste da nossa “goianidade”, já que, com um aroma e uma cor intensos, e um sabor difícil de descrever, ao mesmo tempo profundo, de terra, e adocicado, de fruta, o pequi tem ainda outra particularidade: a pouca polpa (que, no entanto, tem mais vitamina C que a laranja) tem que ser cuidadosamente arrancada com os dentes, evitando morder o caroço que, no interior, está cheio de pequenos espinhos (o nome, em tupi, significa “pele espinhenta”). Ninguém disse que o cerrado era fácil, mas passamos no teste e confirmamos: quem gosta de pequi, gosta.
Se o prato mais famoso é o arroz de pequi, há muitas outras formas de o utilizar — no seu livro Frutos do Cerrado, Márcia Pinchemel tem, por exemplo, receitas de costelinha suína laqueada com mel e pequi e arroz com guariroba, ou com rosti de mandioquinha aromatizada com pequi ou ainda, nas sobremesas, um pudim de tapioca ao perfume de pequi (para além de muitas outras com castanha de baru, jabuticaba, buriti).
Por fim, despedimo-nos de Goiânia com uma jantinha. Ao cair da noite, passamos pelo Nossa Skina para encontrar amigos, comer um espetinho, uma picanha, um cupim, um feijão tropeiro, uma mandioca temperada com manteiga do sertão. Ficamos a conversar na noite morna, falando disto e daquilo, rindo à toa. Num estado com grandes fazendas de criação de gado bovino, esta é tradição que o goiano não dispensa — porque, como diz um dos nossos amigos, “você pode até requintar um pouco, mas o boteco jamais sai da sua vida”.