As viagens do FMM: como ir do Nilo à Martinica, com escala em Tuva
Com a chegada ao Castelo de Sines, o FMM estende a sua programação do final da tarde até à madrugada. E será difícil esquecer estes dois dias em que houve Sofiane Saidi, Chassol, Huun-Huur-Tu, Timbila Muzimba, Elida Almeida, Moon Hooch e Alsarah.
Pinturas no rosto de quem sabe estar a participar na encenação de um ritual, trajes tradicionais com cores tão vívidas que seriam descortináveis a cem metros numa zona de vegetação densa, danças de uma expressão tribal compostas por movimentos chocalhados pela percussão desembestada. Tudo isto no palco do Castelo de Sines poderia sugerir uma demonstração etnográfica de uma cultura local num contexto que se poderia perigosamente aproximar de uma aula viva de antropologia. Mas não há nada que faça pensar num programa da National Geographic a tentar documentar autóctones nas suas tradições mais enraizadas e espectaculares durante uma actuação dos moçambicanos Timbila Muzimba.
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Pinturas no rosto de quem sabe estar a participar na encenação de um ritual, trajes tradicionais com cores tão vívidas que seriam descortináveis a cem metros numa zona de vegetação densa, danças de uma expressão tribal compostas por movimentos chocalhados pela percussão desembestada. Tudo isto no palco do Castelo de Sines poderia sugerir uma demonstração etnográfica de uma cultura local num contexto que se poderia perigosamente aproximar de uma aula viva de antropologia. Mas não há nada que faça pensar num programa da National Geographic a tentar documentar autóctones nas suas tradições mais enraizadas e espectaculares durante uma actuação dos moçambicanos Timbila Muzimba.
De facto, aquilo a que se assiste no início de uma jornada memorável do Festival Músicas do Mundo no Castelo, esta quinta-feira, não é uma perpetuação do passado, mas sim uma reivindicação arrebatada e presente de uma tradição musical e dançada (se as timbilas são o instrumento privilegiado para esta música, muzimba designa o corpo dado à dança – tudo em chope, dialecto moçambicano de Inhambane e Gaza). Escutar a forma como as timbilas (xilofones de generosas proporções) propulsionam a música rítmica mas também melodicamente, e como tocadas com este vigor infundem um tão extraordinário sentimento de colectivo e de aproximação, é como engolir de um trago um shot de felicidade. E é essa uma das belezas mais desarmantes dos Timbila Muzimba: nada daquilo a que assistimos em palco, apesar dos sinais e códigos de ritual, se apresenta como exótico – pelo contrário, busca o tempo todo a mais flagrante proximidade.
Se a fasquia ficara colocada bem lá no alto no final da tarde, o regresso ao Castelo depois da passagem pelo palco da praia para ver e escutar o ganês Guy One não deixaria descair essa medida um só milímetro. E a noite havia de pertencer a dois parisienses: Chassol e Sofiane Saidi. Christophe Chassol especializou-se numa linguagem ultra pessoal que busca no quotidiano inspiração e fonte directa para a sua exploração sonora. Desenvolvendo mais a fundo ideias com parentesco àquelas afloradas por Gavin Bryars (Jesus’ blood never failed me yet), The Unthanks (The romantic tees) ou João Barradas (Expressive idea), o músico francês empreende viagens pelo mundo registando em áudio e vídeo discurso falado e cantado sobre o qual, depois, constrói uma partitura musical.
Em Sines, mergulhou nas imagens, nas falas e nos cantos da ilha Martinica, colando a sonoridade jazz-soul dos seus teclados (auxiliada pela bateria estimulante de Mathieu Edward) a melodias vocais, assobios, chilrear de pássaros, flautas tocadas no meio de um cemitério, discursos sobre a origem da língua crioula, deflagrações rítmicas do Carnaval… Em cada tema, é como se Chassol derramasse para o som a realidade e tentasse ser a sombra imaginativa dessa realidade; como se, lembrando um pouco Hermeto Pascoal, nos segredasse a importância de abrirmos os ouvidos a toda a música que existe no mundo, nas ruas, no dia-a-dia, toda aquela que não tem a pretensão de chegar a um palco. Correndo o risco de se tornar fastidioso na abordagem conceptual é, ainda assim (e acima de tudo), comovente.
Raï 2.0 e cavalos de Tuva
Parisiense de adopção, o argelino Sofiane Saidi contava ao PÚBLICO em Abril como fugiu do seu país aos 17 anos, escapando ao crescimento da Frente Islâmica de Salvação e à guerra civil, e não deixou então de carregar consigo para a capital francesa a experiência que tinha já acumulado a cantar raï em casamentos e cabarets. O raï, dizia-nos, significara a descoberta de uma música “directa, que falava mais aos jovens e que permitia um sentimento de liberdade”. Em Paris, encontrou abrigo num circuito bas-fond, onde começou a germinar o perfil do “príncipe do raï 2.0”, só totalmente revelado quando esbarrou na banda francesa Mazalda.
E não sabendo nós que destinos alternativos poderiam ter sido apresentados a Sofiane, apetece dizer que esse encontro foi o melhor que lhe podia ter acontecido. Porque a sua voz rouca e muita vezes a cair para um registo cigano é suportada na perfeição por uma banda que, através do saz, do saxofone eléctrico, das percussões e dos teclados e sintetizadores, eleva a sua essência magrebina para um ponto de permanente fervura, o raï em cópula com o funk e toda a electrónica que possa manter o carrossel em andamento. Extraordinário concerto em que todos os momentos de acalmia e de quebra são, na verdade, o prenúncio do rebentamento escaldante que se seguirá.
Encaixado no meio de Chassol e de Sofiane Saidi, os Huun-Huur-Tu foram, para alguns, um erro de casting ou de digestão demasiado lenta. Mas num FMM onde agora se descobrem tubos coloridos distribuídos por um patrocinador para serem agitados durante os concertos, é importante que o público não seja infantilizado e seja obrigado a baixar à terra. Se a dimensão espectacular das actuações é importante, o que deve contar verdadeiramente é a música que ocupa o palco.
E embora fosse menos convidativa para abanar o esqueleto, ainda que as canções sobre cavalos, homens que querem ser águias para voar para junto de princesas e viagens dos antepassados a Pequim possam não soar a cavalgadas espalhafatosas pelas estepes da região de Tuva, na intensa beleza daquilo que fazem os Huun-Huur-Tu havia uma recompensa gigante em silenciar o mundo à volta e ser arrastado pelo canto gutural da região e pelas cordas esfregadas com um arco cujo silvo parece um portal de acesso àquela paisagem – revelada às pinceladas, em que cada tema desvela mais um pouco esse lugar. Num mundo cheio de atalhos, é bom haver quem não os tome.
Ao longo do Nilo
Ao historial de choques geográficos e culturais do FMM – que inclui concertos como Congotronics vs. Rockers, Fatoumata Diawara e Roberto Fonseca ou Oumou Sangaré com Bela Fleck – junta-se agora Havana Meets Kingston. E é exactamente aquilo que se imagina: montado de forma escorreita e eficaz, um concerto que ora pende para o reggae e o dancehall, ora se estica para o son e para a salsa. Duas ilhas em permanente troca, mas em que o lugar para surpresa é, na verdade, feito de águas pouco profundas. Não que a surpresa por si só seja garante de concertos inesquecíveis. Basta pensar no bizarro hard-rock mesclado de blues que os finlandeses Pekko Käppi & K:H:H:L levaram nessa madrugada ao palco da Avenida Vasco da Gama (destinado aos concertos tardios, de acesso livre) para concluir que o enganador avistamento dos Led Zeppelin em Sines não ficará muito tempo na memória – ambição menos impossível na noite seguinte para o projecto franco-paquistanês Markus & Shahzad, em que a voz enorme de Shahzad Santoo Khan praticamente sobrevoou canções com um tratamento pop/r&b, fácil de imaginar como uma desenvolta pop contemporânea no Paquistão.
A maior e mais grata surpresa destes dois dias de FMM no Castelo de Sines viria dos norte-americanos Moon-Hooch, trio que atira com dois saxofones frenéticos para cima de uma base rítmica acelerada, num fluxo contínuo que é um autêntico estalo em quem assiste. Mike Wilbur e Wenzl McGowen tocam com uma energia endiabrada e destilam-na sem pejo em palco sob a forma de jazz, funk, dub e o que mais vier à rede – ainda que em matéria de saxofones, continue a faltar ao FMM a passagem dos britânicos Melt Yourself Down. No caso de Elida Almeida, a abrir o palco do Castelo nessa tarde de quarta-feira, a surpresa era bem menor. E felizmente, porque é cada vez menos um segredo que a cantora cabo-verdiana é um dos mais sérios casos de afirmação da música africana dos últimos anos. Passeia pelos funanás, pelos batuques e pelas mornas com o mesmo desembaraço e a mesma propriedade, reúne atrás de si uma banda de coesão invejável e faz das suas próprias canções monumentos como Forti dor ou Bersu d’oru (que levou o Castelo ao delírio).
E, claro, tivemos ainda nessa mesma noite Alsarah & the Nubatones. Etnomusicóloga em Nova Iorque, a cantora sudanesa parece percorrer toda a musicalidade do Sael no seu reportório, mas sem fazer disso uma montra de artefactos para admirar de mão no queixo e apreciar de forma pouco implicada. Tanto atraca no Mali como atravessa a fronteira com o Egipto ou se demora na música núbia, perseguindo, em parte, o curso do Nilo. É ao Nilo, “aquele que tudo sabe, antes e depois”, que confessa entregar os seus segredos. Felizmente, há uma parte do Nilo que chega até nós.
O PÚBLICO está em Sines a convite do FMM