Trolls sob comando dos governos ameaçam liberdade de expressão, alerta relatório
O objectivo do “trolling patriótico” é levar o alvo a sentir uma enorme indignação, pressão pública e medo sobre as opiniões desfavoráveis e impedir a difusão dessas ideias. Um relatório publicado este mês junta casos do fenómeno em sete países.
As notícias falsas recebem a má fama, mas não são as únicas inimigas da democracia e da liberdade de expressão nas redes sociais, alertam investigadores. Em todo o mundo, políticos e governos usam redes de utilizadores – alguns, em formato de programas informáticos – para espalhar mensagens na Internet e silenciar vozes críticas com ataques pessoais.
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As notícias falsas recebem a má fama, mas não são as únicas inimigas da democracia e da liberdade de expressão nas redes sociais, alertam investigadores. Em todo o mundo, políticos e governos usam redes de utilizadores – alguns, em formato de programas informáticos – para espalhar mensagens na Internet e silenciar vozes críticas com ataques pessoais.
“Trolling patriótico” é o nome dado ao fenómeno num relatório publicado, este mês, pela investigadora e advogada de direitos humanos, Carly Nyst, e o investigador da Universidade de Oxford, Nick Monaco, com casos de sete países: Azerbaijão, Bahrein, Equador, Filipinas, Turquia, EUA e Venezuela. Foi encomendado pelo think thank norte-americano Institute for the Future (IftF) para monitorizar o aumento desta prática dentro e fora de países autoritários – ou democracias como a dos EUA.
“Embora a prática moderna de propaganda seja mais confortavelmente atribuída a regimes autoritários na Coreia do Norte, ou grupos como o ISIS, os estados democráticos também tentam moldar o discurso ao promover ideologias”, notam os autores. Um dos métodos é o uso de trolls, nome usado na gíria da Internet para pessoas que geram rixas virtuais e semeiam a discórdia.
Nos últimos três anos, ameaças de violação “até à morte” tornaram-se comuns para as jornalistas Ceyda Karan, na Túrquia, Arzu Geybulla, no Azerbeijão, e Maria Ressa, nas Filipinas, de cada vez que publicam artigos desfavoráveis para os respectivos governos. Durante os ataques, chegam a receber 90 mensagens violentas por hora. Nos EUA, Rosa Brooks, uma colunista e professora de Direito na Universidade de Georgetown, em Washington, também é alvo de comentários obscenos e montagens com frases ofensivas por cima da cara desde 2017. São promovidos por sites de extrema-direita que não toleram criticas ao actual governo, porque Brooks sugeriu, num texto de opinião, que os militares descontentes deveriam contestar as ordens do Presidente Donald Trump como sinal de protesto.
Em comum nestes casos recolhidos desde 2015 está o uso de milhares de contas nas redes sociais (particularmente Twitter e Facebook) para amplificar ataques pessoais, com acusações de traição à pátria através de memes ofensivos, gifs e montagens. Programas de computador – que simulam comportamentos humanos nas redes sociais – são usados para criar milhares de contas falsas, automaticamente, e aumentar o alcance das críticas. Para os autores do relatório, a táctica é transformar a voz de alguns “numa arma de censura”, com o objectivo de levar os alvos a sentir uma enorme pressão pública e gerar medo sobre opiniões desfavoráveis aos líderes políticos.
Particularmente alarmante, dizem os autores, é a forma como alguns governos admitem esta prática. O relatório cita exemplos: “As pessoas não me podem insultar ou difamar em nome da liberdade de expressão… Se enviarem um tweet, enviamos mais 10 mil tweets a chamar-lhes cobardes”, argumentou, por exemplo, Rafael Correa, o antigo presidente do Equador, durante um discurso de 2015 em que falava dos Correístas (membros de um grupo criado para defender Correa na Internet). Mais tarde, o governo contratou uma empresa chamada Ribeney Sociedad Anonima, para serviços de difamação.
Das redes sociais para órgãos do governo
Nas Filipinas, o presidente Rodrigo Duterte também admitiu pagar a pessoas para o defender nas redes sociais durante as eleições de 2016 (o investimento ultrapassa os 200 mil dólares, de acordo com um estudo da universidade de Oxford). Embora diga que já não os usa, Mocha Uson – uma antiga líder do grupo de música pop Mocha Girls – foi eleita como a responsável oficial pelas redes sociais do Presidente Duterte, depois de o apoiar, insistentemente, durante a campanha eleitoral ofendendo os críticos no Twitter e no blogue pessoal.
Todos os dias Uson partilha entre 20 a 30 mensagens sobre política no Facebook e no Twitter, e acompanha o Presidente em viagens. É comum descrever jornalistas que discordem do governante de presstitudes – uma amálgama, em inglês, das palavras press (imprensa) e prostitutes (prostitutas).
Simon, um informático de 24 a viver nas Filipinas, explica ao PÚBLICO que as tácticas são óbvias, mas resultam porque há descontentes. “As pessoas estão cansadas de promessas de melhorias por parte dos políticos. A parte da população que se sente ignorada quer ter alguém a quem apontar as culpas e atacar. As redes sociais facilitam isto, ao remover o filtro das pessoas. Duterte aproveitou-se disto”, diz este filipino, que pediu para não utilizarmos o apelido para evitar repercussões nas redes sociais.
Diz, porém, que não vê as redes sociais como culpadas. “Não se pode culpar apenas a plataforma em que surgem estas estratégias. Temos de ir à base da questão – as pessoas que espalham este tipo de informação e começam as rixas. Nas Filipinas, parte da população sente-se posta de parte se não vive nas grandes cidades e as redes sociais são uma forma de terem uma voz. Eu tenho sorte por viver em Manila, ter acesso a uma educação, poder viajar. Não consigo ver o ponto de vista do outro lado e isso é um dos problemas.”
Simon não vê uma solução fácil, mas diz que retaliar nas redes sociais não serve de nada. “Aí temos ambos os lados a gritar e ninguém a ouvir. As redes sociais são boas para expressarmos a nossa opinião, mas não para ouvirmos as dos outros.”
Na Rússia, que não tem um capítulo específico no relatório por ser um caso já conhecido do grande público, os autores dizem que se nota uma tendência de profissionalizar a actividade de trolling.
No início de 2018, o procurador especial norte-americano Robert Mueller, apresentou uma acusação formal contra uma conhecida “fábrica de trolls” russa – uma empresa chamada Internet Research Agency, com sede em São Petersburgo – que executa campanhas de desinformação na Internet através de notícias falsas e comentários em redes sociais e sites de jornais.
Em Julho, 12 agentes dos serviços secretos russos foram formalmente acusados de terem lançado ataques informáticos como parte destas campanhas de ataque e desinformação.
Sinalizar alvos
Mesmo em países onde o governo não está directamente envolvido nos ataques, os apoiantes mais extremistas de alguns políticos começam a utilizá-los para fazer campanha. O caso actual nos EUA é descrito como preocupante.
É habitual o Presidente Donald Trump utilizar o Twitter para chamar aos jornalistas nomes como “escumalha” e “inimigos das pessoas”. “Observa-se a estratégia de motivar campanhas de ódio nos EUA, onde órgãos de notícias híperpartidários e fãs de Donald Trump indicam aos trolls quem devem atacar”, lê-se no relatório do IftF.
Depois de criticar Donald Trump e o site de notícias de extrema-direita Breitbart, Rick Wilson, um consultor do Partido Republicano, recebeu milhares de imagens manipuladas da filha a ser atacada. Foram enviadas, e partilhadas, por apoiantes do actual presidente. Trump – que na altura em que os ataques começaram era um candidato à Casa Branca – motivou as criticas ao chamar Wilson de “fraco” e “burro como uma porta” no Twitter.
“A transformação de informação numa arma, através de ataques promovidos pelo governo constitui uma interferência nos direitos dos indivíduos de se expressarem livremente e de terem uma opinião própria”, alerta o relatório nas conclusões. Entre as soluções sugeridas está uma maior facilidade em denunciar contas problemáticas e uma maior monitorização dos indivíduos que são pagos por governos, ou outras entidades, para usarem as redes sociais. Não vai ser fácil, admitem os autores do IftF.
“Atribuir responsabilidade para as acções que ocorrem no mundo online funciona, no melhor dos casos, de forma imperfeita, e no pior dos casos, é impossível”, explicam Carly Nyst e Nick Monaco na apresentação do relatório. Segundo os autores, a Internet assegura mais o anonimato do que a segurança. “O problema da atribuição é que as campanhas online são criadas para parecerem espontâneas e orgânicas, estão camufladas pelo caos. Por essa razão, identificar a ocorrência de um ataque de trolls promovido pelo Estado é um desafio.”
Apesar das dificuldades, porém, os autores esperam que o relatório “se torne o primeiro passo para capacitar indivíduos, investigadores e políticos a detectarem o fenómeno e combatê-lo.” Porque como diz a advogada de direitos humanos Carly Nyst, "as notícias falsas são só a ponta do icebergue” no problema das comunicações contemporâneas online.