Uma política para a infância
O atual sistema de apoios, ao contrário do que se propala, não favorece o segundo e terceiros filhos.
A primeira dessas prioridades é a natalidade. A segunda, a emigração, cujos fluxos se mantêm acima das 100 mil saídas por ano, em contraste com o cenário cor-de-rosa propalado pelo atual Governo. A terceira, a imigração, recurso indispensável, mas não prioritário face às duas anteriores. A quarta prioridade, a redução da mortalidade, é a mais difícil de conter, mas ainda assim merecedora de políticas que promovam a segurança, a saúde e o bem-estar das populações.
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A primeira dessas prioridades é a natalidade. A segunda, a emigração, cujos fluxos se mantêm acima das 100 mil saídas por ano, em contraste com o cenário cor-de-rosa propalado pelo atual Governo. A terceira, a imigração, recurso indispensável, mas não prioritário face às duas anteriores. A quarta prioridade, a redução da mortalidade, é a mais difícil de conter, mas ainda assim merecedora de políticas que promovam a segurança, a saúde e o bem-estar das populações.
Querer, de forma mais ou menos velada, colocar a imigração como principal prioridade é não perceber que no contexto das dinâmicas globais dos mercados de trabalho, Portugal deixou de ser atrativo para os trabalhadores de qualificações médias e superiores. Se se pretende incentivar a atração para baixos salários e baixas qualificações, então mais não fazemos que reproduzir e consolidar o modelo já existente e de que nos pretendemos libertar. Porque é esse modelo o responsável pelos fluxos de saída de nacionais e estrangeiros residentes em Portugal.
O ano de 2017 consagra a tendência teimosamente ascendente de emigrantes portugueses para velhos e novos destinos a que se associa o máximo valor atingido pelas suas remessas na chamada “era do euro” (Observatório da Emigração). Surpreendentemente, o tema desapareceu das manchetes dos jornais ou das reportagens pungentes feitas a partir dos aeroportos.
A questão da natalidade
De há muito que está demonstrado pelas experiências registadas em diferentes países europeus que a mera atribuição de apoios monetários à maternidade e às famílias tem efeitos limitados sobre a natalidade. Por isso costumo defender que às políticas de natalidade prefira aquelas que se orientam para a maternidade/paternidade e para a infância. Não é pelo facto de se criarem incentivos monetários que se contraria o adiamento da maternidade, principal causa do diferencial entre a fecundidade desejada e concretizada. É a confiança num ambiente favorável e de condições de acesso e usufruto de serviços de apoio à infância que contribuam para uma maior compatibilidade entre a vida familiar e a profissional que tem um efeito mais estruturante e sustentável da natalidade.
O atual sistema de apoios, ao contrário do que se propala, não favorece o segundo e terceiros filhos. Basta consultar as estatísticas do abono de família para se perceber que a maior proporção dos beneficiários (43%) corresponde aos casais com um só filho. Os casais com mais de um filho representam 5% dos beneficiários e os que não beneficiam representam (34%).
Ou seja, para além de sermos dos países com menor contributo dos apoios sociais à infância, temos um modelo que tende a favorecer os “filhos únicos”. Sabendo que a taxa de fecundidade portuguesa é de 1,3 filhos por mulher em idade fértil, o desafio que se coloca é o de criar condições favoráveis ao segundo filho.
A questão da educação de infância
Existem contextos sociais que exigem uma intervenção mais alargada. Refiro-me aos problemas da compatibilidade entre atividade profissional e vida familiar e, não menos importante, o baixo nível de rendimento médio dos ativos portugueses. Estes são constrangimentos relevantes para o enquadramento do deficit demográfico.
Porém, as políticas mais relevantes e com maior impacto social prendem-se com a urgência em generalizar o acesso às creches e aos jardins-de-infância. A proposta de gratuitidade de frequência dos estabelecimentos da rede solidária e da rede pública é, sem dúvida, a mais ambiciosa porque só assim se consegue superar a dualidade das tutelas e a evidente falta de articulação entre os objetivos da creche e do jardim-de-infância.
Neste contexto ganha especial relevância o papel das empresas no apoio a esta política: a responsabilidade social das empresas tem de começar pelos seus próprios colaboradores e os seus filhos. Com a generalização de horários alargados e a organização do trabalho por turnos, as empresas têm um dever incontornável de proporcionar aos seus trabalhadores as condições de segurança e confiança que o apoio de creche e jardim-de-infância podem representar. O exemplo pouco positivo da Autoeuropa e muito positivo de algumas empresas portuguesas que são pioneiras na concretização desta responsabilidade social para com os seus colaboradores deveriam ser aproveitados para se generalizar os poucos casos existentes.
Tornando estes estabelecimentos mais atrativos e com serviços mais qualificados, poderemos promover o melhor desenvolvimento cognitivo, emocional e relacional das crianças, com efeitos previsíveis no seu crescimento e na melhoria dos seus trajetos escolares, como tem sido profusamente demonstrado pela investigação em neurociências.
Como é evidente, não se pretende escolarizar a infância, tão só criar os melhores ambientes e os estímulos mais favoráveis ao seu desenvolvimento pessoal.
A questão do financiamento
Existem muitas formas de avaliar o custo deste conjunto de medidas. O estudo divulgado faz uma primeira estimativa dos custos diretos, apontando para os 400 a 500 milhões de euros. Entretanto existe uma outra forma de fazer essa avaliação. Qual o custo de uma natalidade cada vez mais reduzida? Qual o custo de uma redução projetada da população ativa daqui por 15 ou 20 anos? Quanto se perde de contribuições para a segurança social? O que se poupa pela redução do insucesso escolar?
Só respondendo a estas e outras questões poderemos ter uma avaliação séria e rigorosa do impacto financeiro destas medidas. Perder tempo a saber quem ganha e quem perde, o que se gasta daqui a 18 anos ou saber onde se “corta” para compensar o aumento da despesa, poderá dar bons títulos de jornal, mas não ajuda em nada a resolver um problema que diz respeito a todos os portugueses, pobres e ricos, de esquerda e de direita, jovens ou idosos.
Perante a escala do problema, não nos amesquinhemos face à ambição que esta proposta representa.
O que há de novo?
Onde o documento de trabalho do Conselho Estratégico Nacional (CEN) inova é na visão integrada sobre a maternidade/paternidade e a infância. O principal valor acrescentado desta proposta não está nos apoios ou na melhoria das condições de acesso às creches e ao pré-escolar. Esse valor acrescentado expressa-se na forma como se superam as perspetivas sectoriais, as múltiplas tutelas, ou as iniciativas legislativas desgarradas que raramente fogem às políticas distribucionistas. A ideia de uma educação de infância desde os seis meses aos seis anos é ainda um desafio para a estrutura segmentada e desarticulada da oferta de cuidados de infância e de educação.
É igualmente uma alternativa às amas informais, na sua maioria com reduzidas qualificações tão necessárias a uma educação de qualidade, estimulante das capacidades indispensáveis à formação do caráter, que promova hábitos saudáveis e processos de socialização diferenciados.
Propositadamente, neste documento não se prevê a apresentação imediata de iniciativas legislativas ou de ações pontuais destinadas a fazer vingar as nossas opções. Por esta razão se poderá entender a diferença entre construir alternativas e fazer “espalhafato” oposicionista sem qualquer ganho relevante para a superação dos problemas do país.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico