Em Sines, a música pode soar à natureza eslovena ou à cozinha polaca
Trazendo para palco instrumentos que não o eram, Sirom e Sutari foram responsáveis por dois concertos preciosos e singulares na chegada do FMM a Sines. A festa ficou por conta de TootArd e Carmelo Torres.
Voltou a falar-se dos Montes Golã nos últimos dias, a propósito de um avião de guerra sírio abatido pelas forças israelitas enquanto sobrevoava o território. Se há virtude que se pode reconhecer ao Festival Músicas do Mundo (FMM) é o de baixar os olhos do céu e trazê-los à terra, dando rosto a povos, culturas e lugares dos quais se conhece, por vezes, apenas os relatos de situações de guerra ou de dramáticos contextos humanitários.
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Voltou a falar-se dos Montes Golã nos últimos dias, a propósito de um avião de guerra sírio abatido pelas forças israelitas enquanto sobrevoava o território. Se há virtude que se pode reconhecer ao Festival Músicas do Mundo (FMM) é o de baixar os olhos do céu e trazê-los à terra, dando rosto a povos, culturas e lugares dos quais se conhece, por vezes, apenas os relatos de situações de guerra ou de dramáticos contextos humanitários.
Provenientes dos Montes Golã, os TootArd sobem ao palco do Largo Poeta Bocage, frente ao Castelo de Sines, para embalar o público com canções que parecem trazidas pelos ventos dos blues eléctricos soprados desde o deserto do Saara. A tarde de segunda-feira começa lentamente a despedir-se na cidade alentejana quando os três músicos, sem desfazer um sorriso rasgado, estendem sobre o público aquilo que anunciam como “arabic funky camel music”. As canções que ouvimos, numa troca melódica persistente entre guitarra eléctrica e saxofone, com a bateria a correr por baixo, são as que compõem o seu disco Laisser Passer.
E Laisser Passer, não demoram a explicar-nos, é o nome do documento que lhes permite sair dos Montes Golã, em concreto de Majdal Shams, uma das poucas povoações sírias que não foi despovoada na sequência da ocupação israelita em 1967. Os TootArd vivem, por isso, num vazio: não têm passaporte ou sequer nacionalidade (e dependem de convites como o do FMM para poder ausentar-se da terra). A sua música, celebratória e rejubilante, soa sempre à forma que encontraram para mascarar esse vazio.
A mais fascinante proposta musical destes dois dias de aquecimento para os concertos apontados às multidões no Castelo de Sines viria, nessa mesma noite, dos eslovenos Sirom, trio mais confortável (e menos traumatizado) com a ideia de silêncio. Com uma parafernália de recursos no palco do Centro de Artes (desde banjos, violinos e balafons aos mais inomináveis objectos), produzem uma música de essência minimalista, provocando pequenas transformações no tapete sonoro que vão tecendo com uma suavidade e uma fluidez tais que toda a viagem se faz sem acidentes.
O passado dos eslovenos, ligado ao pós-rock, torna-se evidente nesta exploração repetitiva de pequenas células, como se nos pegassem pela mão e nos levassem a visitar várias salas e ambientes distintos, com esse conforto de cada paragem se revelar um pequeno lugar de encantamento. Mas furtam-se ao mandamento do pós-rock que obriga uma construção musical a desaguar num crescendo; aqui é a beleza mutante e compassada que manda. Às tantas, falam de “memoryscapes” – nome também do filme que documenta a gravação do seu segundo álbum, Lahko Sem Glinena Mesojedka – e do processo de imersão na natureza para ver de que forma afectaria a sua música. E faz todo o sentido, porque até a voz celestial de Ana Kravanja nos aparece como tentativa de se confundir o mais possível com paisagens naturais.
Da cozinha à cumbia
Com um menor grau de insólito, também as polacas Sutari — autoras de outro momento muito especial nestes dias — se fazem acompanhar em palco por instrumentos que não foram pensados enquanto tais. Um ralador de cozinha, uma batedeira eléctrica e uma tábua de pão raspada por uma faca podem ser o harmonioso fundo musical para uma das canções delicadas com que as três cantoras e instrumentistas passeiam pelas tradições musicais de Polónia e Lituânia. Há também gargalhadas e bacias com água que se juntam a instrumentos de cordas e de percussão para criar um universo familiar, numa recriação do habitat natural de muitas destas canções, mas também enquanto inventiva fuga da mulher à fatalidade do papel doméstico.
Enquanto cantam (entrelaçando e deslaçando as vozes com uma desarmante beleza) sobre vinganças, ditados recolhidos nas aldeias do país — “nunca alcançarás o paraíso se dormires costas com costas com o teu parceiro” ou “é bom ser mulher, mas é melhor ser mulher casada” — ou estranhas conversas entre uma árvore e uma rapariga, as Sutari reinventam com subtileza uma tradição, num movimento de reconhecimento e questionamento, e infundem-lhe um novo e revigorante sentido. Em total contraste com a peculiar actuação que as precedeu.
Exímio violinista, o húngaro Lajkó Félix puxa para as cordas do instrumento todas as linguagens que lhe ocorram. Num par de minutos, pode navegar por águas de Bartók, mudar-se para o folclore da região e, sem qualquer entrega de pré-aviso, parecer um Jack White blues-garage que simplesmente escolheu outro instrumento. Só que toda esta demonstração de abundante talento esbarrou numa performance algo autista, como se Félix estivesse a praticar em casa e não a tentar estabelecer qualquer tipo de relação com o público que tinha por diante.
Neste mesmo dia, o Largo Poeta Bocage permitiria também — com maior ou menor intenção da programação — reflectir sobre as músicas tradicionais e a sua modernização. Com um intervalo de algumas horas, diferentes imagens da Colômbia passaram por Sines. O colectivo El Leopardo impôs-se pelas batidas techno e house, juntando uns samples avulsos, umas maracas e uma gritante escassez de ideias à mistura; enquanto Carmelo Torres y su Cumbia Sabanera serviram cumbia atrás de cumbia sem qualquer recurso a artifícios. Acordeão e baixo bailavam juntos com a mais enraizada tradição do género, as percussões mantinham o fogo sempre aceso e não havia como alguém se cansar deste registo pouco versátil. Foi pouco mais de uma hora. Podiam ter sido, sem grandes problemas, três ou quatro. Ninguém se teria importado.
O PÚBLICO está em Sines a convite do FMM