Os tesouros escondidos de um matemático inglês em Lisboa

Em 1999, séculos após a concepção de uma “régua de cálculo” logarítmica, foi encontrado no Museu Nacional de História Natural e da Ciência de Lisboa um instrumento tal como o concebido por William Oughtred. Só há seis no mundo.

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A forma mais antiga de uma “régua de cálculo” logarítmica: os círculos de proporção, cerca de 1630, e que estão no Museu Nacional de História Natural e da Ciência (inv. MUHNAC-UL-DEP148) Sandra Pascoal

Como não pensar que os matemáticos recorrem à magia quando os observamos a resolver cálculos difíceis? Esta pode ter sido a reacção de muitos quando assistiram ao desenvolvimento dos logaritmos na viragem do século XVII. Inicialmente os logaritmos foram imaginados como números “artificiais” associados aos números usuais e divulgados sob a forma de páginas e páginas de tábuas numéricas. Estes números artificiais permitiam multiplicar ou dividir números elevados muito rapidamente. Por exemplo, se associarmos a cada número A o seu logaritmo log(A), então para multiplicar dois números A e B e encontrar o produto X, basta formar a soma dos seus respectivos logaritmos. Em notação abreviada: somando os valores dos logaritmos log(A) + log(B) é igual ao log(X). Na tábua dos logaritmos sob log(X) encontra-se a seguir o correspondente número X. Somar é muito menos trabalhoso do que multiplicar.

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Como não pensar que os matemáticos recorrem à magia quando os observamos a resolver cálculos difíceis? Esta pode ter sido a reacção de muitos quando assistiram ao desenvolvimento dos logaritmos na viragem do século XVII. Inicialmente os logaritmos foram imaginados como números “artificiais” associados aos números usuais e divulgados sob a forma de páginas e páginas de tábuas numéricas. Estes números artificiais permitiam multiplicar ou dividir números elevados muito rapidamente. Por exemplo, se associarmos a cada número A o seu logaritmo log(A), então para multiplicar dois números A e B e encontrar o produto X, basta formar a soma dos seus respectivos logaritmos. Em notação abreviada: somando os valores dos logaritmos log(A) + log(B) é igual ao log(X). Na tábua dos logaritmos sob log(X) encontra-se a seguir o correspondente número X. Somar é muito menos trabalhoso do que multiplicar.

Assim que o trabalho de Lord Napier, o mais famoso dos criadores dos logaritmos, ficou conhecido em Londres, a partir de 1614, os professores de matemática da cidade começaram a enviar para o prelo esse trabalho. Entre os autores estavam Henry Briggs e Edmund Gunter, que não tardaram a aplicar os logaritmos a vários usos. Gunter imaginou, por exemplo, uma régua com escala logarítmica que poderia ser útil no cálculo prático mas também seria uma poderosa ferramenta na visualização do conceito dos logaritmos e da principal propriedade deles: números a distâncias iguais estão na mesma razão. Esta régua era um verdadeiro “dispositivo de pensar”. William Oughtred, um professor privado de matemática, modificou esta ideia e desenhou um instrumento em forma de disco com escalas circulares dando-lhe o nome de “círculos de proporção” (circles of proportion). Instrumento esse que um certo Richard Delamain plagiou publicando-o antes de Oughtred em 1630, com título Grammelogia.

Em 1999, alguns séculos após a concepção desta poderosa ferramenta, numa visita ao Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNAC) da Universidade de Lisboa, o respeitado perito Gerard L’Estrange Turner ficou surpreendido por encontrar um instrumento como o tal concebido por Oughtred e concluiu que estes círculos de proporção teriam sido elaborados na oficina do fabricante Elias Allen em Londres. Foi um espanto encontrar tal raridade no MUHNAC, pois deste instrumento existem apenas seis no mundo inteiro!

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Manual escolar (impresso 1634) por Inácio Stafford: é a primeira versão impressa em Lisboa dos seis primeiros livros dos Elementos de Euclides Biblioteca Nacional de Portugal

O que Gerard L’Estrange Turner não podia saber é que o conhecimento do instrumento de Oughtred tinha chegado a Lisboa logo nos anos de 1630 graças ao talento de um padre jesuíta, Inácio Stafford (morreu em 1642), cuja família morava na Inglaterra onde, nessa época, não se tolerava o catolicismo. Tinha estudado no Colégio dos Ingleses em Valladolid, de 1620 a 1624, e entrou na Companhia de Jesus. Será depois enviado para Lisboa, por ordens superiores, onde aprofundava os seus estudos de matemática. Com quem e como estes estudos se fizeram é ainda hoje objecto de investigação, mas uma coisa é certa: Stafford tinha correspondentes em Inglaterra porque assimilou rapidamente a literatura matemática publicada naquela altura. Como sabemos isto? Graças a certos tesouros escondidos em bibliotecas de Lisboa.

Inácio Stafford distinguiu-se em Lisboa, sendo nomeado, em 1630, professor da cadeira de matemáticas no colégio jesuíta de Santo Antão, na famosa Aula da Esfera. Esta instituição teve grande importância na história do ensino científico em Portugal até 1758. A Aula da Esfera centrava-se nas bases da astronomia e matemática com um ensino, coisa extraordinária então, em língua portuguesa ou castelhana e admitia a participação de estudantes de fora do colégio.

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Arithmetica practica geometrica logarithmica de Inácio Stafford, Biblioteca Nacional de Portugal

Hoje encontramos manuscritos de Stafford datados de 1633 a 1638 em várias bibliotecas como testemunhos da sua actividade como professor, verdadeiros tesouros escondidos. Entre outras matérias, os textos apresentam os instrumentos logarítmicos concebidos em Londres e explicam a sua constituição e uso inovador. Em especial, o tratado Arithmetica Practica Geometrica Logarithmica (Biblioteca Nacional de Portugal) cita os méritos de Gunter e de Oughtred. Curiosamente refere-se aos círculos de proporção por “gramelogia” seguindo o neologismo cunhado pelo plagiador Delamain. Quem espalhou a boa notícia dos logaritmos em Lisboa, traduzindo do Inglês para castelhano, foi o padre Inácio Stafford. E, por incrível que pareça, não é de excluir que um dos instrumentos outrora utilizados pelo próprio Stafford seja precisamente a “gramelogia” conservada numa das mais importantes colecções científicas de Lisboa, no MUHNAC.