Uma estrela a brilhar e um desastre a acontecer na despedida morna do Super Bock Super Rock
A estrela foi Benjamin Clementine, o desastre foi o concerto de Julian Casablancas & The Voidz. Duas marcas a assinalar no último dia de festival, no sábado. Para 2019 já há datas: 18, 19 e 20 de Julho.
Benjamin Clementine fê-lo novamente e, naquela que foi a sua 14ª actuação em Portugal, protagonizou o concerto mais celebrado do último dia de Super Bock Super Rock, no Parque das Nações, em Lisboa. Foi ele que mais público reuniu na noite de sábado e até cantou I won't complain com a convidada Ana Moura, ainda assim, foi chamariz insuficiente para preencher mais que metade da plateia do Altice Arena. Julian Casablancas & The Voidz também deixaram o seu lugar na história do festival, mas pelo carácter completamente inusitado de um concerto desastrado, marcado por um som tenebroso, que conseguiu esvaziar quase por completo a mesma sala.
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Benjamin Clementine fê-lo novamente e, naquela que foi a sua 14ª actuação em Portugal, protagonizou o concerto mais celebrado do último dia de Super Bock Super Rock, no Parque das Nações, em Lisboa. Foi ele que mais público reuniu na noite de sábado e até cantou I won't complain com a convidada Ana Moura, ainda assim, foi chamariz insuficiente para preencher mais que metade da plateia do Altice Arena. Julian Casablancas & The Voidz também deixaram o seu lugar na história do festival, mas pelo carácter completamente inusitado de um concerto desastrado, marcado por um som tenebroso, que conseguiu esvaziar quase por completo a mesma sala.
Duas marcas da despedida da 24.ª edição do Super Bock Super Rock. Segundo os dados avançados pela organização, passaram sábado pelo recinto no Parque das Nações, em Lisboa, 17 mil espectadores (as contas finais apontam para 53 mil ao longo dos três dias). E já são conhecidas as datas da edição de 2019: 18, 19 e 20 de Julho.
Depois de uma quinta-feira em que os The xx concentraram atenções e em que Zé Pedro foi homenageado, seguido de uma sexta-feira em que o hip hop de Anderson .Paak, Travis Scott ou Prof Jam foi responsável pelo dia mais concorrido de festival (20 mil espectadores), a despedida não teve surpresas. Neste aspecto: antecipava-se que a noite seria de Benjamin Clementine e foi precisamente isso que aconteceu. O pianista e compositor inglês, autor de dois álbuns, At Least for Now e I Tell a Fly que o transformaram numa figura destacada no actual cenário musical (e num sério caso de popularidade em Portugal), surgiu descalço, como habitualmente, de casaco caído sobre o tronco nu, e começou pelo fim. Ave dreamer, a canção que fecha o álbum mais recente, obra conceptual dedicada a um mundo em crise (à Europa, em particular), foi aquela que primeiro entoou quando os longos dedos caíram sobre o piano. A acompanhá-lo, tinha um baterista, uma secção de cordas e um baixista/guitarrista que se revelou indispensável ao tom mais eléctrico (em sentido literal e figurado) aplicado à sua música.
Já há muito se dissipou a timidez, tão cativante quanto intimidante, que manifestava nas primeiras visitas. Benjamin Clementine é hoje dono do palco. Percorre-o e usa-o com segurança e familiaridade. Antes da terceira canção, Nemesis, lamentou, entre sorrisos, não falar português. Era sorriso malandro, porque o disse assim mesmo, na língua que não fala: “Não falo português. Talvez um dia... Um bom dia”. Quanto terminou o dueto com Ana Moura, apresentada como dona de uma voz “muito elegante”, “muito bonita”, gracejou com a apresentação de novo convidado, esse inexistente - “Please welcome, Seu Jorge”.
Sério, liderou uma catarse colective em Condolences, guiando o público nos versos feitos mantras - “I'm sending my condolences to fear / I'm sending my condolences to insecurities” -, e exigiu silêncio enquanto, a capella, cantava sobre um mundo cego pela sede de lucro, viciado em entretenimento, um mundo sofredor e em chamas.
A sua voz admirável ofereceu-nos One awkward fish, passou por Phantom of Alepoville ou por Jupiter. As mãos percorreram o piano como compositor impressionista, o corpo agitou-se quando bateria e baixo distorcido se uniram em tumulto rock, o olhar muito aberto procurou os olhos daqueles que o encaravam na primeira fila. Adiós, muito a propósito, foi a última canção. Tendo em conta todas as visitas, e sendo elas tão recentes, que nos tem feito nos últimos anos, já não há lugar para a surpresa e para o deslumbramento, mas Benjamin Clementine continua capaz de nos prender à sua voz e à sua presença.
Porém, tê-lo como cabeça de cartaz do último dia de festival, meros meses depois dos seus últimos concertos no país, não deixa de ser sintomático: a 24.ª edição do Super Bock Super Rock mostrou-se algo atípica, sem que lhe discerníssemos um rumo definido e uma verdadeira identidade, o que se terá reflectido na menor afluência notada ao longo dos dias – a excepção terá sido a noite de sexta-feira, dedicada ao hip hop.
Um espaço demasiado grande
Sábado, foram então cerca de uma centena aqueles que viram no palco EDP Isaura, primeiro nome do dia, apresentar as canções do seu álbum de estreia, Human, e chamar Diogo Piçarra para um dueto no single Closer. No palco LG by SBSR, terão sido menos, mas muito efusivos, muito de acordo com o som saído das colunas, aqueles que viram os portuenses Sunflowers, autores este ano de recomendadíssimo Castle Spell, fazer do rock'n'roll aquilo que queremos que nunca deixe de ser: música caminhando no fio da navalha, uma descarga de energia transportadora, uma vontade irreprimível de maltratar guitarras para seu próprio bem – ah, o divino feedback - e uma capacidade de nos levar naquela irresistível voragem punk.
Ao longo da tarde e da noite que se lhe seguiu, mais houve para ver: um Baxter Dury de casaco amarrotado e camisa desfraldada a encher o copo de vinho branco e a assomar perante nós como um Bryan Ferry do outro lado do espelho – fica-lhe muito bem o charme decadente; uma Sevdaliza a conquistar o seu público com uma Human também vertida em português, com sonoridades densas – de um trip-hop actualizado aos samples de orquestras tradicionais persas – e o misticismo de um dervixe convertido ao voguing. Na despedida do 24.º Super Bock Super Rock, reencontrámos o psicadelismo musculado dos Keep Razors Sharp, com segundo álbum a editar brevemente, e os Sonhos pop dos eternos Pop Dell'Arte – também houve a curiosidade Fura Del Baus, mas da coreografia aérea que protagonizaram no interior da Altice Arena não ficará grande memória.
Sábado, testemunhámos o ontem tornado hoje com os históricos The The de Matt Johnson, regressados após longo silêncio e que actuaram sensivelmente à mesma hora que Benjamin Clementine, mas que conseguiram reunir no Palco EDP contemporâneos conhecedores e mais novos curiosos com a lenda. Nesse concerto, a bem-vinda nostalgia com que This is the day é recebida teve contraponto na renovada actualidade de Heartland - são agora, são este preciso momento versos como “Let the poor drink the milk while the rich eat the honey / Let the bums count their blessings while they count the money”.
Da mesma forma, também é agora, é totalmente o presente o rapper britânico Stormzy. A partir das 20h, encheu a Altice Arena dos subgraves deliciosamente intensos do grime e de rimas debitadas com fervor e intenção. “Tinha as minhas dúvidas [sobre o concerto]”, disse em determinado momento.“Pensei, 'será que o grime chegou a Portugal?'” - as centenas que assistiam fizeram questão de lhe dizer que sim e de lhe mostrar o apreço que lhe têm.
Enquanto caminhávamos pelo recinto, de palco em palco, de concerto em concerto, da pala do Pavilhão de Portugal para o interior da Altice Arena ou para o palco montado no seu exterior, a sensação era a de que cada um dos espaços dedicados à música parecia demasiado grande para o público presente e para o entusiasmo que, no geral, se sentia no ar. Se o pretendêssemos ilustrar de forma manifestamente exagerada, certamente injusta, dificilmente encontraríamos melhor que o concerto que encerrou a actividade no palco principal do festival. Foi ali, na Altice Arena, que o vocalista dos Strokes, Julian Casablancas, protagonizou com os Voidz, a banda que a acompanha desde 2013 e com a qual editou este ano o sólido álbum Virtue, um momento que ficará para a história por todas as razões erradas.
A voz de Casablancas ora se afogava em reverb, ora distorcia em volume proibitivo. A guitarra de Amir Yaghmai atacava-nos sem piedade num volume incompreensivelmente alto e absurdamente estridente. Os teclados mantinham-se praticamente inaudíveis, enquanto a bateria parecia estar perdida algures no fundo de um poço de profundidade considerável. Assim começou, assim continuou até ao fim. Enquanto o público, mãos protegendo os ouvidos, ia abandonando o pavilhão, Casablancas aproveitava os longos intervalos entre canções para conversas de si para si – também disse que Lisboa é porreira e que gosta muito dos azulejos. Até ao fim, que chegou com o pavilhão praticamente vazio, aquela massa sonora desconexa a torturar os presentes. A banda perdida lá em cima, o público perdido cá em baixo. Até ao fim, a incerteza. Saberiam eles o que se estava a passar? Estaria o público a ser submetido a um bizarro happening? Não passaria tudo de uma homenagem aos Spinal Tap para a qual não fomos avisados?
Quando tudo acabou por fim, os sobreviventes lembraram-se que os Sofi Tukker estavam quase a chegar ao palco Somersby, na Sala Tejo do pavilhão. Que, depois deles, ainda havia DJ Big. Felizmente, ainda havia a possibilidade de guardar outra memória como a derradeira.