"Houve situações em que quase apetecia esticar a corda"

Manuel Machado O presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) está satisfeito com os resultados alcançados com vista à descentralização administrativa do país e desvaloriza o clamor de críticas, algumas delas de autarcas do seu próprio partido.

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O socialista Manuel Machado é presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses e da Câmara de Coimbra miguel manso

Diria que foi difícil chegar a um acordo em matéria de descentralização administrativa?
Foi trabalhoso, mas foi estimulante, mas não está fechado. Envolveu muita gente e conseguimos assegurar que as negociações políticas decorriam com boa-fé negocial e com confiança. Considero-me satisfeito com o desfecho final.

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Diria que foi difícil chegar a um acordo em matéria de descentralização administrativa?
Foi trabalhoso, mas foi estimulante, mas não está fechado. Envolveu muita gente e conseguimos assegurar que as negociações políticas decorriam com boa-fé negocial e com confiança. Considero-me satisfeito com o desfecho final.

Porque é que, para si, este acordo este acordo é bom para as autarquias?
Por várias razões. O acordo, no que se refere à lei-quadro da descentralização [aprovada quarta-feira], estabelece uma metodologia muito exacta e também o alcance do que é que vai ser descentralizado. Essa foi uma das nossas preocupações desde o início. É uma forma diferente de agir na governação. Deixou de haver a situação, que nos desconfortava, em que alguns municípios, num estado de necessidade absoluta, eram praticamente coagidos a assumir tarefas de forma aleatória, conforme a vontade do delegante.

Compreende as críticas que têm surgido ao acordo?
Num processo destes não podemos estar todos os dias a dar nota dos avanços. A ANMP partilhou a documentação essencial com todos os associados, uns olharam numa determinada perspectiva e com determinado tipo de preocupações para esses documentos, outros olharam com outra perspectiva. Estou habituado a posições contrárias e a divergências até de natureza política.

O presidente da Câmara do Porto disse que o acordo entre a ANMP e o Governo “é uma afronta ao poder local”. Como comenta?
É uma opinião que respeito. Houve aqui um cuidado muito meticuloso de articulação, quer com os nossos pares, quer com os órgãos de soberania. Se não estou em erro, a proposta de lei-quadro do Governo foi apresentada na Assembleia da República há mais de dois anos. Depois isto é um processo negocial que é dinâmico. É um bom acordo para o poder local.

Acha as críticas injustas?
Não vou comentar. A ANMP é a casa comum do poder local democrático e garanto que as decisões que são tomadas nos órgãos da associação são, na maior parte das vezes, se não na sua totalidade, discutidas, debatidas e preparadas até se chegar a um consenso.

Há autarcas que não se revêem no acordo. O presidente da Câmara de Gaia referiu-se a ele como “um logro”.
A expressão é infeliz, não corresponde à verdade, não tem fundamento nem é sustentável. Temos a lei-quadro, que estabelece o que vai ser descentralizado e com que garantias, e está a decorrer a preparação de um conjunto de 23 diplomas sectoriais, cada um na sua área de especialidade – não estão todos no mesmo grau de maturidade. Não se pode confundir a árvore com a floresta, nem o trigo com o joio.

Isso quer dizer o quê?
Não vou mostrar as propostas iniciais que estavam em cima da mesa e onde chegámos, e algumas aonde ainda vamos chegar.

Está a dizer que o Governo foi cedendo às pretensões da ANMP?
Num processo negocial as partes confrontam pontos de vista, fundamentam e, como houve boa-fé, a solução não pode deixar de ser boa. Agrada a todos? Não. Mas garantiram-se equilíbrios entre grandes municípios e municípios muito pequenos. Houve um avanço enorme nestes mais de 42 anos de poder local democrático. Costumo afirmar que, quando Coimbra se desenvolve, Lisboa desenvolve-se, o Porto desenvolve-se, Viseu desenvolve-se... Cada município beneficia do desenvolvimento dos seus vizinhos e, tendo consciência de que a sociedade perfeita não existe ainda, o trabalho e os resultados alcançados são positivos. A revisão da Lei das Finanças Locais, também aprovada [esta semana], prevê a criação de um fundo para a descentralização. No próximo ano haverá um aumento das transferências financeiras para as autarquias de 200 milhões de euros.

A ameaça de Rui Moreira de tirar o Porto da ANMP surpreendeu-o?
A ANMP tem desempenhado ao longo destes 42 anos de poder local democrático uma função de enorme importância e utilidade prática para os 308 municípios.

Mas a ameaça existe.
Espero que isso não aconteça. Com este trabalho chegamos a uma etapa importante que potencia a modernização a administração pública portuguesa. O que preponderava até 1976 era o Governo corporativo e quem conheceu o condicionamento que havia decorrente do Estado corporativo tem consciência de que há uma significativa recuperação da autonomia do poder local.

Acha que o Porto vai sair da ANMP?
Creio que o senhor presidente da Câmara do Porto, conhecendo os documentos finais, pode verificar que há um ganho substancial e uma vantagem também para o município do Porto.

O município do Porto participou no debate da descentralização ou só apareceu no fim?
O trabalho deste processo foi partilhado e todos os contributos que nos fizeram chegar foram considerados e ponderados.

A Câmara do Porto participou no processo da descentralização?
Não vou fazer a contabilidade do que é que cada dos meus pares contribuiu, porque isso é trabalho que deve ser feito nos sítios próprios no âmbito da associação.

As câmaras de Lisboa e do Porto são grandes de mais para caberem na ANMP? Ou volta e meia fazem falta?
A ANMP é a associação nacional onde os associados são bem-vindos e devem participar e devem estar. O atomismo é perverso, fragiliza e dificulta alcançar objectivos.

Considera este acordo uma vitória do poder local, mas essa opinião não é consensual dentro do próprio PS. Eduardo Vitor Rodrigues já lhe deu os parabéns pela “ilusão da descentralização”…

Tenho a certeza de que o meu camarada e presidente da Câmara de Gaia, lendo os documentos finais, verificará que a questão não é o acordo, é um processo legislativo. Não houve nenhum acordo formal escrito, houve uma metodologia de trabalho e de debate sistemático das questões, das dificuldades, dos problemas, e, à medida que cada uma ficou consolidada, passou-se, para a seguinte. Na gíria interna, a designação que dávamos até quarta-feira [dia em que o Parlamento aprovou a proposta do Governo para a descentralização administrativa e a Lei de Base das Finanças Locais] era diploma consensualizado, diploma não consensualizado.

Eduardo Vítor considerou "ridículo" o envelope financeiro acordado entre o Governo e a ANMP.
A ANMP partilhou com todos os associados os dados que a Administração Central nos forneceu, para depois, no terreno, analisarmos no detalhe se o que estava a ser produzido pela Administração Central era exacto ou não. Só há uma razão para esse tipo de afirmação: algumas das listagens enviadas para a Câmara de Gaia e para todas as câmaras estão imperfeitas, estão incompletas. Aquilo que peço é que se analise o que está nas listas oficiais, porque o trabalho é feito com base nisso. Há escolas que não têm área para avaliar e esses erros não são da nossa responsabilidade.

A Câmara de Gaia diz que há uma subavaliação orçamental dos municípios por parte da ANMP e do Governo, afirmando que no caso de Gaia faltam oito milhões de euros.
Isso é um equívoco incompreensível. A base negocial pressupõe o cruzamento de dados de parte a parte. 

Essas situações têm de ser corrigidas.
Há situações que têm de ser rectificadas. Nós não podemos nem ir buscar dinheiro a mais nem ficar prejudicados, isso implica avaliações, caso a caso, e acordos específicos. Os órgãos de cada município vão pronunciar-se sobre o que pretendem contratualizar e como.

Se até autarcas do PS criticam a actuação da ANMP neste processo, não sente necessidade de por o lugar à disposição, de um congresso extraordinário, de se relegitimar?

Obviamente que não. Estou a cumprir um mandato que me foi conferido pelo congresso. Um democrata tem de estar capacitado para ouvir as críticas, mesmo quando injustas e infundadas. Da parte dos órgãos de soberania, em especial, do Governo, houve compreensão mesmo nos períodos negociais de maior intensidade de debate. Houve períodos de tensão e houve, às vezes, situações em que quase que apetecia esticar a corda, mas quando se estão a negociar coisas tão importantes como esta não se podia entrar por aí e partir a corda.

Com a entrada em vigor desta legislação, os bens do Estado que estejam sem utilização passam a pagar IMI.
A quantificação desses bens vai levar um, dois ou mais anos. O que está no projecto de diploma específico é que cada município, sabendo que há um bem devoluto, abre o processo para aquele bem e comunica à Autoridade Tributária e este passa a pagar IMI.

Mas houve resistência.
Claro que não agradou a alguns sectores do Estado. Houve um deputado do PS que interveio discordando. Estamos a dar um passo para entramos nesse segmento da fiscalidade e pôr o Estado a pagar impostos.

Em relação à transferência de competências, há áreas praticamente fechadas.
As áreas que estão a ferver são: educação e saúde pela especial sensibilidade. Houve um conjunto de matérias que foram logo no primeiro impulso postas de lado, como gerir o pessoal docente e o pessoal médico e enfermeiros. No caso das escolas estão em discussão questões ligadas à parte financeira e, no caso da saúde, há matérias que precisam de mais coisas. No sector da educação, há uma conta que é difícil de fazer tem a ver com os serviços "outsourcinzados".

Tem alguma ideia de quando é que este processo ficará concluído?
Os diplomas sectoriais que sejam consensualizados até 15 de Setembro são considerados consolidados, para aqueles em relação aos quais não houver consenso alargado serão pedidos mais estudos.

Dos 23 diplomas, quais são os que estão fechados ou em fase de ultimação?
Cultura e lojas do cidadão são diplomas praticamente consensualizados. Já na acção social há questões que vão depender muito da aprovação, em Bruxelas, da reprogramação do Portugal 2020.

E a justiça?
Está em discussão. Há aspectos como a protecção de menores e os julgados de paz a debater. O diploma das vias de comunicação não é consensualizável, vai ter de se partir muita pedra, porque o valor que Administração Central pôs em cima da mesa não dá sequer para sinalização e pintura. As áreas portuárias também não estão ainda consensualizadas.

A descentralização vai ainda demorar algum tempo…
Este é um processo político dinâmico. À medida que comece a ficar claro que serviços que foram descentralizados trabalham melhor e servem melhor as comunidades, isso vai-nos ajudar a resolver os que ainda estão difíceis.