No Vista, o jantar começa num porto de pesca
João Oliveira está a trabalhar um menu do mar e da sustentabilidade no restaurante Vista, em Portimão. A base é o peixe e o marisco; os hidratos de carbono, as gorduras e o açúcar têm vindo a desaparecer.
São cinco da tarde e João Oliveira está sentado numa cadeira de plástico no porto de Portimão à espera de um arrastão que era suposto ter chegado duas horas antes. O que é que um chef que conquistou uma estrela Michelin (para o seu restaurante Vista no Bela Vista Hotel & Spa) faz aqui?
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São cinco da tarde e João Oliveira está sentado numa cadeira de plástico no porto de Portimão à espera de um arrastão que era suposto ter chegado duas horas antes. O que é que um chef que conquistou uma estrela Michelin (para o seu restaurante Vista no Bela Vista Hotel & Spa) faz aqui?
Um dos menus que João tem no Vista chama-se “Mar e Sustentabilidade” e não é apenas conversa ou trabalho que se limita à cozinha. O chef interessa-se verdadeiramente por peixe e todos os dias tenta aprender mais, seja com o mestre com quem conversamos no porto, numa espécie de sala de estar improvisada ao ar livre com sofá, grelhador e tudo a que temos direito, seja em pescarias quando tem tempo para isso.
Não é fácil, confessa. Uma das coisas que quer fazer é acompanhar o arrastão da empresa Testa e Cunhas numa saída para o mar, mas isso implica embarcar a meio da tarde de um dia e só voltar 24 horas depois — isto se tiver sorte, porque, como acontece hoje, o mestre do arrastão pode decidir não voltar e ficar no mar outras 24 horas para poder trazer mais peixe para terra. E isso é complicado para quem tem que gerir um restaurante que, para além dos jantares fine dining, serve ainda pequenos-almoços e almoços mais leves.
O que muitas vezes acontece — como hoje, em que estamos há quase duas horas a apanhar a brisa agradável que sopra no porto e a conversar sobre técnicas de pesca com os pescadores — é João combinar com o mestre e vir à lota buscar os peixes que habitualmente são rejeitados por não terem valor comercial ou simplesmente por serem espécies que nunca foram registadas.
“A maior parte desse peixe pode dar para consumo”, explica. “Eles trazem-me, eu vejo o que está registado e aquilo que não está passo para o responsável da empresa para ele ver, junto do IPMA e da Docapesca, o que se pode fazer para que o peixe entre no circuito comercial. Quando isso acontece, podemos comprá-lo e cozinhá-lo no hotel. Se não estiver registado, não pode entrar em lota e não podemos usá-lo.”
Nem sempre na cozinha se conseguem milagres, mas a experiência do chef é que há muitas espécies óptimas, que nós, enquanto consumidores, simplesmente não sabemos como valorizar. E quando faz um menu com a palavra sustentabilidade, o que pretende é isso mesmo: evitar o desperdício de peixe, que é apanhado e deitado novamente ao mar, muitas vezes já morto, porque em terra não se vende. Mesmo o que já possa estar registado, muitas vezes tem um valor comercial tão ridiculamente baixo que não compensa o espaço que ocupa no arrastão.
“É uma questão de tempo e de paciência”, prossegue João. “Vamos chegar lá. Estar a mandar muito peixe fora é que não faz sentido nenhum. Há espécies, como o taralhão, que há uns tempos ninguém conhecia e que agora já está a 16, 17 euros o quilo. Desde que esta parceria começou, já conseguimos dois registos [de espécies] e a valorização de outras, como o ferro-de-engomar ou as cintas, um peixe comprido e vermelho, que já vão à lota.”
Poucas horas depois, estamos sentados a uma das mesas do Vista, em frente ao mar da praia da Rocha, rodeados por uma decoração inspirada precisamente no mar e a iniciar o menu “Mar e Sustentabilidade”. Foi há um ano e meio que João Oliveira o começou a trabalhar, mas, explica-nos depois, com o passar do tempo ele foi-se tornando mais “radical”.
Um exemplo: excepto se houver um pedido expresso do cliente, não é trazido pão nem manteiga para a mesa. A refeição, composta por 12 pratos (sendo muitos deles bastante pequenos, pelo que, no final, o equilíbrio é perfeito), não tem praticamente hidratos de carbono, todos os pratos são cozinhados com pouca gordura (e, de preferência, vegetal) e as sobremesas são mais frescas do que doces.
Quanto aos peixes e mariscos, João, para além das experiências que faz com os menos valorizados ou com menor valor comercial, tenta usar os que estão na época certa e no seu pico máximo de qualidade. Podemos interrogar-nos sobre a relação com a sustentabilidade quando vemos, por exemplo, uma entrada de atum, com rábano e alho negro. O chef explica: “Ontem usámos bonito, hoje chega-nos o sarrajão ou merma. Usamos a variedade que existe no mercado, que já foi capturada ou que está a passar pelo Algarve neste momento. Quando usamos o sarrajão, explicamos que é um miniatum que passa pelo Algarve e que tem certas características. Mas não vou atrás do rabilho, do bluefin ou do yellowfin, uso o que está disponível no mercado.”
Trabalha também, noutra das entradas, as algas como a codium e a alface-do-mar, que pede aos pescadores ou ao seu fornecedor habitual, a Nutrifresco. “Faço uma base com creme de algas, em cima leva um gel de alface-do-mar, e um pó de camarinhas que lhe dá um toque a marisco, mais adocicado.”
O equilíbrio de toda a refeição, e em cada um dos momentos, é uma das grandes preocupações de João Oliveira. O menu está organizado num crescendo de intensidade, em que cada prato marca um avanço, mas vai buscar algum dos sabores dominantes do anterior para garantir a continuidade.
A seguir ao atum vem a cavala, com ervilhas (que estão já no final da época), vinagre de lavanda e toques asiáticos — por vezes a cavala pode ser substituída por sarda, dependendo de qual está mais gorda. O importante, sublinha João, é que sejam peixes apanhados em águas mais frias, que são os que desenvolvem mais gordura precisamente para aguentar as temperaturas.
O prato da sardinha é uma brincadeira com os sabores mais tradicionais, usando o pimento e o tomate verde da salada algarvia para acompanhar uma “sardinha no pão”, diferente no aspecto mas fiel ao sabor, que serve também para despertar a curiosidade dos estrangeiros. Seguimos com os crustáceos do Algarve com um gaspacho verde, a lula dos Açores em sabores asiáticos, com galaga e coco, a pescada (e a luta para convencer os portugueses a comer um peixe que associam à casa da avó ou ao refeitório da escola, brinca João) com abacate, aipo e lingueirão, o mais intenso salmonete, com couve-flor e mexilhão e, para terminar, o peixe-galo com espinafres, fígados e ovas, um prato de peixe que, pela força dos sabores, quase parece de carne.
Depois de uma pré-sobremesa que homenageia a laranja do Algarve, o menu termina com uma sobremesa de maçã verde, aipo e wasabi, que foi acompanhada pelo Riesling Dócil de Dirk Niepoort (e, a propósito da harmonização, é de destacar o excelente trabalho da equipa de sala chefiada por Tiago Pereira). Deixamos um conselho a quem for ao Vista: este é um menu que começa a ser pensado no mar, que fala da costa portuguesa, das suas rochas, das suas areias, da temperatura das suas águas, da forma como os peixes aí vivem e aí são apanhados. Vale a pena prová-lo como se fosse um mergulho.
A Fugas esteve alojada a convite do Bela Vista Hotel & Spa