Cacela Velha: nómadas por terras árabes
Uma autovivenda, 1000 quilómetros em ziguezague, sem GPS, sem Internet nem auto-estradas. Na mão, o mapa da Rede de Acolhimento ao Autocaravanismo no Algarve, a única do género no país. A volta ao extremo sul começa em Cacela Velha e termina em São Marcos da Serra.
Há duas camas em casa e a lei permite tirar uma sesta. Uma são os bancos traseiros, que se estendem formando um colchão; outra é uma plataforma que desce desde o tejadilho. A segunda é capaz de ser melhor, porque as vistas de cima são sempre mais vagas, desmanchadas, panorâmicas. Afastando a pequena cortina com o dedo, lá está ela, a ria Formosa, com a luz a bater-lhe de chofre, fazendo riscos sempre que encontra a areia. Cacela Velha é essa ideia de afastar uma cortina com o dedo e ver de repente uma aldeia em contraste, equilibrada num forte sobre a Formosa e o Mediterrâneo. Impossível, para quem vinha na nacional 125 a admirar restaurantes de chicken piri-piri, cartazes de protesto contra os buracos na estrada e pensões decadentes dos anos 1980.
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Há duas camas em casa e a lei permite tirar uma sesta. Uma são os bancos traseiros, que se estendem formando um colchão; outra é uma plataforma que desce desde o tejadilho. A segunda é capaz de ser melhor, porque as vistas de cima são sempre mais vagas, desmanchadas, panorâmicas. Afastando a pequena cortina com o dedo, lá está ela, a ria Formosa, com a luz a bater-lhe de chofre, fazendo riscos sempre que encontra a areia. Cacela Velha é essa ideia de afastar uma cortina com o dedo e ver de repente uma aldeia em contraste, equilibrada num forte sobre a Formosa e o Mediterrâneo. Impossível, para quem vinha na nacional 125 a admirar restaurantes de chicken piri-piri, cartazes de protesto contra os buracos na estrada e pensões decadentes dos anos 1980.
Viajar de autocaravana dá para ver tudo. Primeiro, porque, mais uma vez, vai-se no alto. Depois, porque se vai lento, ao som do tilintar das – poucas – panelas. De motor desligado, é nas manhãs que se sente a sobrevivência. Ou porque o sol nasce violento, porque um galho bate à janela parecendo a GNR ou a chuva soa a balas sobre a chapa gasta. Tudo volta a ser elementar, do número de talheres ao peso do vestuário, mesmo se é preciso fazer de casacos almofadas. Nos últimos minutos de cochilo, um cão ladra sozinho no Largo Ibn Darraj Al-Qastalli e um barulho estranho vem do Poço Antigo, o lugar do bairro islâmico criado no século XII, fora das muralhas, para acolher a população que crescia.
“Encontrámos 100 indivíduos.” Nenhum vivo. Era o que nos haveria de explicar Maria João Valente, investigadora da Universidade do Algarve, que participa nas escavações arqueológicas em Cacela Velha, em conjunto com a Direcção Regional de Cultura e a Simon Fraser University, com o apoio da autarquia local. Começaram no dia 18 de Junho, vêm aos grupos de 30 e põem à vista uma “pequena Pompeia”, como gosta de exagerar Maria João, falando dos vestígios cerâmicos, botânicos e biológicos que ajudam a reconstruir o passado do “primeiro lugar a ser reconquistado pelos cristãos no Algarve”, mas que ainda cheira a tempo islâmico.
Dormidores informais
Se 100 dormiam debaixo da terra de Cacela, por cima nenhuma autocaravana pode pernoitar. Não podem, mas no descampado do parque de estacionamento, proibido a casas móveis por um sinal de trânsito, estão quatro. Saem delas luzes azuis, espaciais, que não estão nos poemas de al-Abdari nem de al-Qastalli, que aqui viveram. A maior, de matrícula espanhola, tem uma antena parabólica a apontar para os astros. “A caravana é mesmo para isto. No dia em que tivermos de programar tudo e cumprir regras, devolvo-a ao meu pai”, resolve o condutor andaluz. Ao lado, dois portugueses preparam-se para abrir uma garrafa de vinho. “Nós vimos o sinal, mas ignorámo-lo”, assumem.
O problema do autocaravanismo selvagem, como é apelidado, não é novo, e tem várias faces. De um lado está a filosofia de mobilidade e a ligação genética ao natural. Do outro, a necessidade de regulamentar o sector devido ao mau uso dessa liberdade, com consequências sobretudo ambientais (pelo despejo de águas químicas e lixo em locais inapropriados).
Só nas áreas de serviço e parques de autocaravanismo acompanhadas pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve, o número de veículos aumentou de 13.027 para 43.460 entre 2012 e o ano passado. Mas a massa será muito maior, contando com parques de campismo tradicionais, áreas de serviço não licenciadas e um grande volume de “dormidas informais”.
“A informalidade acontece sobretudo em parques de estacionamento, falésias, junto às praias, aos canaviais”, regista Alexandre Domingues, da CCDR Algarve. Mas é crime? Há quem aponte vazios na legislação, mas as autarquias têm intervindo cada vez mais na regulamentação dos concelhos. No caso de Vila Real de Santo António, dormir sem licença é ilegal. “É necessário garantir condições de higiene e segurança para o despejo dos esgotos, o abastecimento de água potável e electricidade”, defende André Oliveira, coordenador de Áreas de Serviço de Autocaravanas do município, adiantando que, “devido ao aumento da pressão turística promovido pelo grande aumento de autocaravanistas”, prevê-se que em Setembro um novo regulamento venha garantir “um maior conforto para os autocaravanistas” mas também “diminuir o autocaravanismo selvagem”.
Quem, ainda assim, insiste em ficar fora dos parques (ver “Onde dormir”) tem alternativa. Deve enviar um requerimento ao presidente da câmara com pelo menos 60 dias de margem a identificar o quando, o onde e o porquê do acampamento; anexar uma planta de localização à escala de 1:5000; prever o número de hóspedes, tendas, caravanas ou autocaravanas que virão; e apresentar uma autorização do proprietário do terreno a ocupar. E isto é válido apenas para “actividades/eventos de média a grande escala”, esclarece André Oliveira. Talvez o interesse em passar uma noite junto a uma alfarrobeira não seja assim tão intenso para a maioria dos viajantes.
“Pássaros migratórios”
“Se aparecesse um tipo a dormir à beira da estrada, tudo bem, mas são às centenas”, enquadra José Brito, também da CCDR Algarve, para justificar a necessidade de “trazer estas pessoas que andam mais soltas para as áreas de pernoita”. Há mais de dez anos que o problema se intensifica em diferentes pontos da região, onde o lixo se acumula mas também não existem alternativas interessantes para os caravanistas. Os responsáveis desta CCDR apontam o desinteresse pelo sector, que ainda é visto como um turismo de baixo consumo mas também como concorrente directo da hotelaria.
No entanto, este segmento “é incomparavelmente mais interessante do que o típico turismo dos ingleses em Albufeira”, mesmo do ângulo económico, a avaliar pelos muitos milhares de euros que custam algumas caravanas. Por outro lado, permite dinamizar a região fora da “época alta” e das zonas de maior concentração turística.
Neste mês de Junho em que andamos na estrada, quando as noites caíram quentes sobre Cacela, é a época baixa dos nómadas sobre rodas. É de Outubro a Abril que se dá um desfile de autocaravanas no Sul do país. São os novos “pássaros migratórios”, como classifica Alexandre Domingues. Vêm do Norte da Europa gozar a reforma; ficam dois, quatro, sete meses longe da neve. Esta noite, são oito faróis apagados a ver as estrelas. E nómada que é nómada amanhã já não está cá.