O futebol ainda explica o Brasil
Muitos destes nomes passam ao lado de quem não tenha conhecimento enciclopédico do que era o futebol brasileiro entre 1950 e 1970. Mas reconhece-se muito do Brasil e da sua alma e era essa a intenção desta selecção de crónicas de Nelson Rodrigues.
O que diria Nelson Rodrigues do que aconteceu com a selecção brasileira no Mundial 2018? O que acharia ele de Neymar Jr., o craque que passou mais de um quarto de hora a rebolar na relva? Que esta Copa era “uma ficção” e que Neymar era um “mau-carácter em dimensão gigantesca”. E de certeza que Neymar não seria Pelé, a quem chamava rei, muito menos Mané Garrincha, aquele que o povo brasileiro podia esfregar na cara do mundo e ficar feliz com isso. Mas Nelson Rodrigues diria de certeza que haveria algo maior nesta campanha fracassada do “escrete” na Rússia. Não seria só futebol. Talvez fosse culpa do Sobrenatural de Almeida, que fez uma pausa na sua diabólica missão de atazanar o Fluminense para se concentrar na selecção de Tite e pregar rasteiras a Neymar.
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O que diria Nelson Rodrigues do que aconteceu com a selecção brasileira no Mundial 2018? O que acharia ele de Neymar Jr., o craque que passou mais de um quarto de hora a rebolar na relva? Que esta Copa era “uma ficção” e que Neymar era um “mau-carácter em dimensão gigantesca”. E de certeza que Neymar não seria Pelé, a quem chamava rei, muito menos Mané Garrincha, aquele que o povo brasileiro podia esfregar na cara do mundo e ficar feliz com isso. Mas Nelson Rodrigues diria de certeza que haveria algo maior nesta campanha fracassada do “escrete” na Rússia. Não seria só futebol. Talvez fosse culpa do Sobrenatural de Almeida, que fez uma pausa na sua diabólica missão de atazanar o Fluminense para se concentrar na selecção de Tite e pregar rasteiras a Neymar.
Nelson Rodrigues é um nome maior da literatura brasileira e, com este Brasil em Campo, a Tinta da China entra numa das suas facetas mais conhecidas, a de cronista de futebol, depois de já ter publicado várias obras do escritor (um romance, O Casamento; duas colecções de crónicas A Vida como ela é e O Homem Fatal; um livro de memórias, A Menina sem Estrela), para além de uma magnífica biografia escrita pelo jornalista Ruy Castro (O Anjo Pornográfico). Agora é a vez do futebol, e Nelson Rodrigues, pernambucano de nascimento e carioca de vivência e filiação futebolística (torcia pelo Fluminense), escreveu muito sobre futebol. Ele e o irmão, Mário Filho, também jornalista — Estádio Jornalista Mário Filho é o nome oficial do mais mítico dos estádios, o Maracanã.
Este Brasil em Campo é a edição portuguesa de um livro publicado no Brasil em 2012 a marcar o centenário do nascimento do escritor e é uma selecção de crónicas de futebol feita por uma das filhas, a também jornalista Sónia Rodrigues, entre as muitas que Nelson escreveu para várias publicações.
E o que via Nelson Rodrigues no futebol? Mais que toda a gente porque, como recordava Ruy Castro ao Ípsilon em 2017, “não enxergava nada do que estava acontecendo em campo, era muito míope e não usava óculos”. “Como não enxergava o corpo dos jogadores, tinha de enxergar a alma” e escrevia crónicas, acrescentava Ruy Castro, “em que o jogo deixava de ter qualquer importância, o resultado, os acontecimentos”. Mais, Nelson Rodrigues nunca via um jogo sozinho e levava sempre um rádio de pilhas para ouvir o relato.
Uma das coisas que o autor via nos jogos da selecção brasileira era aquilo que ele chamava o “complexo de vira-latas”, “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo [...] em todos os sectores, e no futebol”. Era a condição de pessimismo crónico em que o brasileiro tinha caído, “o pudor de acreditar em si mesmo”, desde aquele jogo no Mundial de 1950 que ficou para a história do futebol como o “Maracanaço”, a derrota do Brasil frente ao Uruguai num Maracanã com 200 mil pessoas.
Esse jogo teve os seus réus trágicos — um deles, o guarda-redes Barbosa, o outro, que está na capa desta colecção de crónicas, Bigode, o lateral-esquerdo ultrapassado por Alcides Ghiggia, o ponta-direita uruguaio, nos dois golos que ditaram a derrota brasileira quando bastava um empate para o Brasil chegar ao primeiro título no Mundial que organizava. “O pânico de uma nova e irremediável desilusão” deixaria de fazer sentido a partir de 1958, com a selecção de Pelé, Garrincha e Didi a conquistar o primeiro de cinco títulos mundiais. “Começava o Brasil. Tudo o que ficava para trás era o pré-Brasil. E basta comparar. Até 58 o brasileiro não ganhava nem cuspe à distância. [...] Ninguém acreditava no Brasil e o Brasil não acreditava em si mesmo”, escrevia numa crónica de 1962.
Talvez não se reconheça o futebol moderno nestas crónicas (que eram do tempo em que os melhores jogadores brasileiros jogavam no Brasil; agora jogam quase todos na Europa), e muitos destes nomes talvez passem ao lado de quem não tenha um conhecimento enciclopédico do que era o futebol brasileiro entre os anos 1950 e 1970. Mas reconhece-se muito do Brasil e da sua alma e era essa a intenção de Sónia Rodrigues quando fez esta selecção de algumas dezenas de crónicas do pai, as contradições da alma do Brasil, “a terra onde se cochicha o elogio e se berra o insulto”.
Também isto é familiar, voltando a olhar para aquilo que o Brasil tem sido nos últimos mundiais de futebol, um sucesso mais ou menos envergonhado até ao momento em que se transforma num fracasso de eco gigantesco. “Quem ganha e perde as partidas é a alma”, escreve Nelson Rodrigues, como que dizendo que um jogo de futebol nunca são só 22 jogadores e uma bola. E isto é especialmente verdade no Brasil, uma terra onde sempre “estão jogando futebol”, como diria Chico Buarque, que torce pelo Fluminense tal como Nelson Rodrigues, mesmo quando a coisa “tá preta”.