A Guerra Colonial ainda não acabou?
A promoção de Marcelino da Mata, a existir, constituirá uma enorme vergonha para o Portugal de Abril.
A História das Nações e o posicionamento dos respectivos povos, perante os diversos acontecimentos do seu percurso colectivo, tem relações que nem sempre são consensuais, acontecendo muitas vezes que o entendimento dos factos é mais fruto das circunstâncias de quando é formulado do que propriamente resultado de um “sentir a Pátria”.
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A História das Nações e o posicionamento dos respectivos povos, perante os diversos acontecimentos do seu percurso colectivo, tem relações que nem sempre são consensuais, acontecendo muitas vezes que o entendimento dos factos é mais fruto das circunstâncias de quando é formulado do que propriamente resultado de um “sentir a Pátria”.
Não são poucas as situações em que o entendimento de acções praticadas varia consoante as épocas e as modas prevalecentes. Nem sempre o “politicamente correcto” é entendido da mesma maneira, havendo mesmo situações onde o que ontem foi incensado hoje é proscrito. E vice-versa, como é natural. Aliás, sabe-se bem que o herói de hoje pode ser o traidor de amanhã, como o inverso também acontece.
Nestes dias assistimos à enorme polémica sobre a questão dos Descobrimentos e da Escravatura (com o respectivo tráfico de escravos).
As conjunturas levam-nos a denegrir o que outrora foi incensado, só porque pode parecer mais “in”, pode dar-nos mais votos, especialmente dos que votam mais influenciados pelo populismo, pelas modas de ocasião, do que pelo discernimento e compreensão.
Não vou aqui tratar deste tema – não é que o mesmo me não interesse e sobre ele não tenha posição –, mas irei tratar especificamente a questão da Guerra Colonial, de que Portugal foi um dos principais protagonistas, durante 13 anos (entre 1961 e 1974).
Durante esses anos, longos anos, os portugueses lutaram, mataram e morreram em três “teatros de operações”, em Angola, na Guiné e em Moçambique.
Aí se envolveram um milhão de portugueses, oriundos de todo o então território nacional, aí morreram mais de dez mil “soldados e marinheiros”, daí regressaram várias dezenas de milhares de deficientes (mentais e físicos), aí se viveram enormes dramas, mas também algumas alegrias, fruto das derrotas e das vitórias parciais que se obtiveram. Aí se constituíram autênticos heróis, habilmente explorados pelo regime fascista-colonialista, mas aí se cometeram igualmente autênticos crimes de guerra.
É da natureza da guerra, não gosto de condenar os que cometeram exageros, pois costumo afirmar que o exagero está na própria existência da guerra, não dos que, fruto das circunstâncias, os cometem.
Estou à vontade, pois fiz a guerra na Guiné, vivi momentos bem difíceis e até dramáticos, mas tive a sorte de não me envolver em nenhuma acção de que mais tarde me viesse a envergonhar.
Há que clarificar, contudo, que distingo bem os exageros que a própria dinâmica da guerra provoca e os exageros que nenhuma guerra deveria provocar.
Partindo do princípio de que os objectivos não podem justificar todos os meios – nem mesmo nas guerras –, esses exageros só acontecem devido ao mau carácter dos seus autores. A sua má formação ética e moral não resiste ao ambiente da guerra e faz surgir os seus instintos assassinos...
Foi pelo facto de nessa altura os crimes de guerra não serem tão condenados como posteriormente o vieram a ser, que muitos dos actos praticados na Guerra Colonial aqui tratada viriam a ser escondidos através de condecorações por bravura e heroicidade.
Tivemos, é certo, os massacres de Wiriamu em Moçambique, que criaram fortes engulhos ao regime de Salazar/Caetano, mas a censura, por um lado, e os tempos de então, por outro, mantiveram os crimes cometidos num quase anonimato total.
Como teria sido, por exemplo, se o ataque a Conacri se verificasse hoje, com a prática de crimes que os portugueses invasores perpetraram na capital da Guiné-Conacri? A que condenações públicas internacionais assistiríamos, suportadas em enormes campanhas “publicitárias”!
O 25 de Abril de 1974 veio permitir a resolução do problema colonial, adaptando-se a posição portuguesa ao comum entendimento internacional, levando Portugal a reconhecer o direito de todos os povos à autodeterminação e independência.
Isso permitiu o acordo de cessar-fogo, o fim das hostilidades, o reconhecimento do nascimento de novos países e a transmissão do poder, de forma pacífica, para os responsáveis desses novos países de língua portuguesa. Portugal dignificou-se no seio da comunidade internacional, a guerra foi esconjurada, considerada ilegítima e maldita. E os heróis de ontem passaram a estar na sombra, procurando todos esquecer...
O sentimento de que os combatentes haviam cumprido o dever que o seu país, através do que os que detinham o poder (mesmo que ilegítimo e contestado) lhe impunham – naturalmente, “apoiado”, pelo facto dos autores da libertação (os Capitães de Abril) também terem feito a guerra, também serem combatentes –, permitiu uma transição pacífica da ditadura para a democracia e colocou entre parêntesis o próprio fenómeno da guerra.
E assim temos vivido, com a inserção dos combatentes, nomeadamente dos deficientes, na sociedade. Apesar de, de vez em quando, os saudosos da “outra senhora” deitarem as garras de fora, tentando instrumentalizar os combatentes para atitudes menos pacíficas.
O facto é que a sociedade portuguesa democratizou-se, adaptou-se às novas regras e a convivência entre todos tem sido um facto.
Por isso, não posso aceitar, e contesto veementemente, as sucessivas tentativas saudosistas do passado, dos ressabiados pela construção da democracia, dos que não aceitam a liberdade de todos e a igualdade de direitos dos antigos colonizadores e antigos colonizados, em trazerem à luz do dia fenómenos de todo em todo desactualizados, inoportunos e inaceitáveis.
Temos assistido a condecorações, passados mais de 40 anos, por actos que, em termos de guerra absoluta, até merecerão ser reconhecidos, mas que – hoje, passados todos estes anos – deveriam enterrar-se de vez. Continua, de facto, a haver quem não queira esquecer, nem permitir que os outros esqueçam, a Guerra Colonial.
Não vou desenterrar outros lamentáveis episódios de promoções e condecorações a que já assistimos. Venho é manifestar-me totalmente contrário, aqui acentuando o meu profundo protesto, contra a hipotética promoção, por distinção, do militar Marcelino da Mata – oriundo da Guiné-Bissau, com nacionalidade portuguesa, já promovido por distinção a capitão, graduado em tenente-coronel – a major.
Porquê?, pergunto. Para o graduarem em coronel ou, quem sabe, general? Para quê?
Porque acredito nos princípios de quem fez a proposta, creio que o senhor general Chefe de Estado-Maior do Exército não sabe dos crimes de guerra que o então sargento Marcelino da Mata praticou na Guiné, com especial relevo no referido ataque a Conacri (e não só, como afirmo na página 44 do meu livro Do Interior da Revolução).
Não quero acreditar, como não acredito, que os diversos responsáveis – ministro da Defesa Nacional, primeiro-ministro, Presidente da República – aprovem a decisão de o promover, se souberem bem o que aconteceu.
Como então, quando foram cometidos esses crimes de guerra (resultado da acção de autênticos assassinos) envergonharam muitos dos militares que deles tomaram conhecimento, esta promoção, a existir, constituirá uma enorme vergonha para o Portugal de Abril!
Por mim, para além de estar disponível para quaisquer esclarecimentos, faço sinceros votos para que se não façam mais quaisquer tentativas para justificar e legitimar uma guerra que, por mais anos que passem, se mostra cada vez mais inútil, ilegítima e injustificável.
Como, aliás, acontece com todas as guerras...!