Arte em Macau promove encontros sem receio dos desencontros

Uns chegaram com flores e outros com balas, mas todos os artistas da exposição Alter-Ego desejam que o diálogo cultural entre a China e os países de língua portuguesa seja mesmo uma realidade.

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A língua portuguesa coabita com a chinesa em Macau, da mesma forma que as zonas mais recentes do território, imponentes e excessivas, cenário para hotéis que são também casinos e centro comerciais de luxo, acabam por comunicar com as áreas habitacionais mais antiquadas e decadentes. É uma coabitação feita de jogos de concordância e ambivalências. Foi como ouvir por estes dias o ministro da Cultura chinês, Luo Shugang, ou o homólogo português, Luís Filipe Castro Mendes, no contexto do Encontro em Macau – Festival de Artes e Cultura entre a China e os Países de Língua Portuguesa, a exortarem ao belo, ao diálogo espiritual, ao encontro de culturas, à cooperação e ao reforço dos laços históricos entre a China e países de língua portuguesa. Sim, claro. A arte e a cultura podem aproximar. Mas é um processo feito de tensões. Com avanços e recuos. Momentos de harmonia e conflito.

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Obra de Alexandre Farto (Vhils) José Pando Lucas

A verdadeira compensação surge depois de superados os desencontros. É por isso que a 1ª exposição anual de artes entre a China e os países de língua portuguesa, inserida no Encontro em Macau, constituída por várias mostras que estarão patentes no território até ao final de Setembro, ganha foros de relevância. É que apesar de a cultura chinesa e portuguesa se cruzarem ali desde meados do século XVI sente-se que está quase tudo por fazer no campo cultural. A China parece tê-lo percebido. E não foi acaso. Para a China Continental, Macau é hoje uma plataforma giratória perfeita para a sua conexão com os países de língua portuguesa. Já para Portugal parece continuar a ser um longínquo porto.

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Obras de Yonamine e Marcelo Cidade Kitmin Lee

No entanto Macau é o farol da Europa no Oriente. É nessa ponte que Portugal poderá apostar. A China, pelo contrário, parece saber da importância da língua portuguesa dentro da sua estratégia global, havendo 33 universidades com licenciaturas em português. E no entanto uma das dificuldades do intercâmbio cultural entre a língua portuguesa e chinesa é a falta de tradutores que tenham conhecimento de ambos os idiomas. E não é apenas uma questão de língua. Faltam agentes que tenham um entendimento real sobre as dinâmicas artísticas do presente na China e nos países de língua portuguesa. É aí que entra a francesa Pauline Foessel e Alexandre Farto, ou seja Vhils, fundadores da galeria lisboeta Underdogs, que nos últimos anos têm tido várias experiências a Oriente.

No contexto do 1º festival de artes há exposições temáticas para ver em dez espaços de Macau, sendo que uma delas – Alter Ego – é na verdade constituída por seis mostras (e uma peça de arte pública de Add Fuel), envolvendo 27 artistas dos países de expressão portuguesa. A curadoria é de Pauline e Alexandre. “Já tinha feito exposições em Pequim, em Xangai ou em Hong Kong, e o ano passado fiz aqui uma exposição individual e o Instituto Cultural de Macau, no âmbito da conferência de cooperação entre a China e Portugal, solicitou que pensássemos numa mostra que englobasse os novos movimentos artísticos dos vários países de língua portuguesa, com a ponte da China, Macau e Hong Kong, e foi isso que fizemos”, conta Alexandre, acrescentando que “Pauline trabalhou em Xangai e Hong Kong durante uma série de anos e tem esse capital de conhecimento acumulado.”

Para além da língua, foram pensando o que poderia unir todos os artistas convocados, pertencentes a diferentes países e a estágios evolutivos em termos de percurso também diferenciados. “Para criarmos um diálogo fluido o ideal seria criar um conceito humanista”, reflecte Pauline. “Foi aí que surgiu o Alter-Ego, essa ideia do outro Eu, o conhecimento de nós próprios em interacção com o reconhecimento dos Outros, sobre o qual desenhámos várias subdivisões temáticas (o Eu, o Outro, a viagem, o choque cultural ou a globalização), partindo sempre de pontos de partida abrangentes e simples.”

Desde o início que havia também a ideia de tentar levar todos os artistas até Macau, tendo a maioria feito a viagem. “Queríamos reunir um misto de artistas emergentes e outros mais estabelecidos”, reflecte Alexandre, acrescentando que haver “um espaço de pensamento comum, para que todos se juntassem aqui fisicamente, se conhecessem e criassem laços, foi algo que sempre esteve presente no projecto.”

E isso realmente aconteceu. Durante alguns dias discutiu-se abertamente sobre o que os aproximava e separava, havendo pontos de contacto na forma como partem de experiências localizadas para reflectir situações universais, ou de como quase todos têm consciência que para poderem criar zonas de mudança têm de estar inseridos num sistema que por vezes os tenta subjugar.

É um jogo constante. Que o diga Gonçalo Mabunda, o artista moçambicano que transforma material bélico em arte para compor as suas esculturas, tronos e máscaras “que reflectem os desajustamentos da globalização ou a falsidade de quem acede ao poder”, diz-nos. “Utilizo as balas para descrever situações de violência, que não se reportam apenas ao passado, mas também ao mundo agressivo dos nossos dias.” No entanto, diz, em sinal de esperança, “tentar compreender estes mecanismos de poder apenas nos mostra que entrar em diálogo é possível. Desde que seja a sério.”   

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O artista moçambicano Gonçalo Mabunda José Pando Lucas

Não espanta que integre a exposição Choque Cultural, no Edifício do Antigo Tribunal, partilhando o espaço com outras vozes agitadoras de onde se distinguem as peças do angolano Kiluanji Kia Henda, a instalação sonora do luso-angolano Nástio Mosquito ou as peças em forma de bandeiras do português Miguel Januário, ou seja MaisMenos.  

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Obras de Zhang Dali Kitmin Lee

A proposta inicial de Januário passava por ter expostas duas bandeiras, da União Europeia e da China, com os fundos trocados. O significado das peças manteve-se, mas teve que ser apresentado sob um formato diferente, perante o desconforto da organização de Macau. “Houve receio que o governo chinês não aceitasse aquela simbologia e então propus duas bandeiras negras com a descrição das anteriores e chamei-lhes Imagine. As peças podem ter ficado menos interessantes esteticamente, mas agora existe uma história relevante para contar sobre o processo.”  

Experiência diversa teve o brasileiro Marcelo Cidade, com um percurso artístico consolidado, por meio de diferentes operações estéticas onde cria ou altera o ambiente em seu redor, produzindo um outro lugar poeticamente expressivo. Nas suas acções constrói novos e surpreendentes espaços. É isso que acontece na galeria Tap Seac, que divide com o angolano Yonamine, na exposição Da Linguagem à Viagem.  

“Inicialmente quando enviei o projecto pensei: isto é um bocado bomba, provavelmente vão achar ofensivo, mas não. Aceitaram de imediato o que foi surpreendente porque jogo com o minimalismo em série, com a redução industrial e a perda de identidade do indivíduo em função de algo maior, de alguma forma característicos da China, e trago isto para este lugar protegido, criando nele uma zona de conflito.”

De alguma forma Marcelo criou uma instalação que é uma arquitectura hostil, algo que é muito comum nas suas operações artísticas pensadas para determinados lugares. “Por norma os meus trabalhos são muito relacionados com as condições sociais paulistas, mas aqui interessava-me lidar com uma situação local e urbana, precisamente por me ser estranha”, afirma, embora reconhecendo que, para lá do contexto, são sempre as tensões entre espaço interno, privado ou público que o movem.

“Tudo o que é privado – o espaço, a saúde ou a educação – é valorizado no Brasil. O público representa o perigoso e o violento. Cresci com isso. Os meus pais tinham pavor que fosse para a rua. Então comecei a investigar. A partir de determinada altura a minha liberdade de actuação, primeiro com o skate e depois com o graffiti, começou a ser feita nesse espaço público e descobri uma cidade incrível.” Depois de ter terminado os estudos em arte, algumas das suas acções artísticas passavam por desenvolver “caminhadas pela cidade.” Os paulistas usavam a cidade como "corredor, fechados nos carros, sem contacto com a rua”, e ele queria mostrar que era ali, “naquele lugar de encontro, da micropolítica, da polis, da praça, do que é público, que a política podia ser percebida.”

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Abdel Queta Tavares, Li Hongbo, Fidel Évora e Guilherme Gafi José Pando Lucas

O medo do Outro, do pobre ou do diferente, isso dura até hoje. “Utilizo o trabalho como acto de resistência para exercer essa cidadania”, afirma. Quem tem também um vínculo forte com o espaço público é o luso-angolano Francisco Vidal, que cresceu com o horizonte territorial e cultural da marginal de Cascais em fundo, tendo também começado pelo skate e graffiti, explorando agora a pintura, desenho ou instalação, com a história a cruzar-se com a política em obras emotivas, de cores vigorosas, numa expressividade tão livre quanto precisa. São suas as 19 pinturas que ocupam as Oficinas Navais nº1 – Centro de Arte Contemporânea. “São obras muito diarísticas, com as bases a serem feitas ao longo de um ano, mas os desenhos por cima, correspondem à emoção do momento”, declara.  

Afirma que é talvez a sua exposição mais leve. Mas não ligeira. “É uma carta de amor. Não são contra nada. Não têm a ver com o opressor e o oprimido que é algo que me move muito. Vim com flores para aqui.” E não foi por acaso. “Esta mostra é um primeiro momento para que algo se possa ir construindo. Há um espaço que nos é comum, e que passa pela língua, mas tem de ser mais trabalhado por todos para ser mais intenso.”

E isso passa por assinalar incompreensões, sem perder a vontade de compreender. “Tiro o chapéu a quem nos convidou, porque muitos de nós têm uma imagem de rua, do hip-hop, da crítica social às hierarquias, e é preciso lidar com este espaço de grande complexidade política que é a China. Ou seja, propuseram-se trazer para aqui artistas que na base operam na contestação à hierarquia. É preciso um equilíbrio grande entre não deixarmos de ser nós próprios, nunca perder de vista a expressão das nossas ideias, não sermos utilizados politicamente, e procurar dialogar.”

Esse diálogo está presente, por exemplo, no museu de Arte de Macau, na exposição O Eu, onde encontramos bustos de mestres do pensamento ocidental esculpidos em papel pelo artista chinês Li Hongbo. “Comecei por desenhar e pintar muitas destas esculturas e com o tempo fui percebendo que foi que isto que acabou por desencadear a minha forma de pensar os objectos artísticos”, declara. Do desenho passou para a escultura, mas o meio permaneceu o mesmo – o papel, que se desdobra de forma surpreendente, voltando a assumir subitamente a sua forma primordial.

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O chinês Li Hongbo mostra os seus bustos em papel desdobráveis José Pando Lucas

No mesmo espaço está uma série fotográfica de Wing Shya, de Hong Kong e habitual colaborador do realizador Wong Kar-wai, que nos devolve tanto a decadência como a extravagância desse território, captando os néones e as gerações mais novas da cidade, e uma outra do moçambicano Mauro Pinto, que desvenda as casas da Mafala, que lhe valeu o prémio BES Photo 2012. Ele descreve o bairro como um “lugar suburbano, onde cabe Moçambique inteiro, brancos, negros ou chineses, e onde todos entram em casa de todos, como se o bairro fosse afinal uma única casa.”

Algo semelhante é partilhado por Herberto Smith, de São Tomé e Príncipe, a viver em Portugal, que apresenta 80 fotos de pequena dimensão, a maior parte de pessoas das periferias de Lisboa, com quem foi “construindo relações”, afirma ele. “Por isso digo que este é um álbum de família. São tanto sobre eles, como sobre mim. Ou seja, são sobre nós.”  

Logo à entrada do espaço encontramos uma instalação imersiva na forma de um labirinto de bambu criado pelos arquitectos João Ó e Rita Machado, que vivem em Macau. “A atenção, por um lado, à história da arte e, por outro de Macau, foi o que nos inspirou”, descreve João Ó, acerca de uma estrutura efémera onde os valores da sustentabilidade também estão presentes. “A instalação temporária e a obra pública são coisas que sempre estiveram presentes no nosso trabalho multidisciplinar, daí o reciclável”, diz Rita. “Aproveitar o bambu, dar-lhe outras roupagens e características de obra de arte, ao mesmo tempo enaltecendo o trabalho dos mestres, com algumas projecções, foi o objectivo aqui expandido.”

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Um labirinto de bambu criado por João Ó e Rita Machado José Pando Lucas

Numa sala escura descobrem-se três rostos iluminados por uma luz intermitente, revelando obras recentes de Vhils, estreadas em Paris, “uma reflexão sobre como a globalização e os modelos de cidade cada vez mais uniformizados afectam e diluem as diferentes identidades”, explica. Um tipo de preocupação que também está presente no trabalho do cabo-verdiano a viver em Portugal há muito, Fidel Évora. “Opero muito a partir da memória e da identidade das pessoas. São histórias sobre histórias que se vão multiplicando. É essa a essência das peças que tenho aqui, que acabam por ser retratos meus, mas construídos através de camadas.”

Fidel Évora está representado na exposição O Outro, no Edifício do Antigo Tribunal, onde estão também trabalhos dos Pedrita, de composição de imagens com recortes de azulejo, esculturas do chinês Zhang Dali, ou fotos de rostos, entre a fotografia de moda e de arte, de Abdel Queta Tavares, da Guiné-Bissau, a viver em Londres. “São rostos de amigos ou de pessoas que vejo na rua e que me marcam”, diz-nos. “Foco-me na cara porque mesmo quando não diz tudo sobre o Outro transmite-nos imensos sinais que, depois, nas sessões, na maior parte das vezes, são confirmadas.”

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Francisco Vidal que tem 19 pinturas nas Oficinas Navais nº1 – Centro de Arte Contemporânea

De Timor-Leste vieram Xisto Soares, Tony Timor e Ricardo Gritto, fundadores do Konsolidarte, um projecto de promoção da arte contemporânea feita naquele país. Oriundo de Portugal, Ricardo Gritto, a viver em Timor há quatro anos, descreve o ambiente artístico ali como sendo “casual, ainda ingénuo, mas com potencial, com um sistema por montar”, descrevendo a maior parte das coisas que se vão fazendo como “emocionais”, mas é uma arte que dá a ver “a humanidade de quem cria”.

O brasileiro Guilherme Gafi e a portuguesa Rita Gomes, ou seja Wasted Rita, na Casa de Nostalgia, acabam por fazer o movimento inverso em Globalização, reflectindo sobre os traços de genuinidade que já se perderam, em favor da comercialização excessiva. “Na minha instalação tentei recriar uma falsa loja de souvenirs, onde se encontram marcas, referências da cultura pop e tendências globais da internet, mas em vez de promover uma qualquer cidade, desejo promover o existencialismo”, diz.  

Nas exposições de Macau cabem imensas coisas. Algumas com humanismo lá dentro. Outras com enfoque nas complexas dinâmicas políticas e socioculturais. Acaba por estar tudo interligado. Em Macau existe oxigénio suficiente para que a ponte entre mundos seja alargada, desde que a China e os países de língua portuguesa não receiem os naturais desencontros de um caminho que pressupõe um encontro cultural verdadeiro. Algumas portas parecem abertas. E outras oportunidades estão aí ao virar da esquina: 2019 será o Ano da China em Portugal.