Quão judaico é o Estado de Israel?
Uma lei que define Israel como o Estado para os judeus abriu uma discussão sobre o que isso implica para os que não são judeus. Não é certo o que este fortalecimento implica num país em que as tradições judaicas são um agregador de religiosos e seculares.
A lei que declara que Israel é um Estado judaico que está a ser debatida no Knesset (Parlamento) está no centro de uma discussão sobre integração e exclusão e sobre quão judaico deve ser o Estado de Israel.
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A lei que declara que Israel é um Estado judaico que está a ser debatida no Knesset (Parlamento) está no centro de uma discussão sobre integração e exclusão e sobre quão judaico deve ser o Estado de Israel.
A proposta de lei, promovida pelo Likud do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, provocou protestos porque reduzirá os direitos dos que não são judeus e aumentará o papel da religião: tem uma cláusula segundo a qual o árabe deixa de ser língua oficial para ter apenas um estatuto especial no Estado, e outra considerando que a halacha (lei judaica) pode ser usada pelos tribunais em casos em que não haja precedentes na lei civil.
Mas para os seus defensores, só declara o óbvio – que Israel é um Estado judaico. E isso é algo que se nota na vida dos seus cidadãos.
Se os pais fundadores de Israel eram judeus seculares, a religião e tradição judaica têm um papel fundamental no Estado. Como explicou ao PÚBLICO por email o professor da Universidade Hebraica de Jerusalém Eli Lederhendler, Israel é um país paradoxal. Se por um lado é parecido com países que têm uma forte cultura católica como parte da identidade como a Irlanda, ou países modernos com tradições antigas como o Japão, por outro o Estado judaico seria um meio de dar aos judeus um direito colectivo a autodeterminação.
Por isso, muitos judeus que não são religiosos no sentido formal aderem a alguns rituais comunitários: ninguém conduz durante o Yom Kippur (Dia da Expiação), por exemplo, sublinha Lederhendler. "Claro que os cidadãos árabes conduzem, e as estradas não estão fechadas. Mas ainda assim, não há quase trânsito – as crianças aproveitam e andam de bicicleta pelas estradas". É um dia especial.
Israel é, assim, uma sociedade que "recebe energia positiva do partilhar de tradições", diz Lederhendler. A maioria das regras religiosas e tradicionais são fruto de consenso, nota o professor, e a maioria (que é secular), "quer que estas regras se mantenham fruto de consenso, e não quer que o país seja 'tomado' pelos rabinos", diz.
Quem é judeu?
A definição do que é ser judeu depende da autoridade a quem se pergunta. Um dos casos mais emblemáticos da diferença é o dos judeus da antiga União Soviética que imigraram para Israel, sobretudo nos anos 1990. Os cerca de 1,5 milhões de imigrantes foram considerados judeus por terem antepassados judeus (um avô ou avó pelo menos), de acordo com a Lei da Nacionalidade. Mas mais de 320 mil não são considerados judeus, de acordo com as mais estritas leis religiosas: porque só é judeu quem é filho de mãe judia, ou se converteu ao judaísmo de acordo com a interpretação ortodoxa. Isto tem implicações: estes não-judeus não podem, por exemplo, casar em Israel.
Casamento religioso…
Os casamentos celebrados em Israel são domínio exclusivo das autoridades religiosas de cada uma das quatro religiões reconhecidas (judaica, muçulmana, cristã, druza e baha’i; a cristã tem ainda dez denominações). Apesar de não haver casamentos seculares (civis), isto pode ser contornado com um casamento no estrangeiro, que depois é reconhecido pelas autoridades; Chipre é um destino popular e os operadores de viagens têm pacotes especiais de casamento. Estes casamentos talvez não sejam mais de 15%, diz Eli Lederhendler, "mas é um sinal dos tempos e é uma tendência que parece estar a crescer".
Também não são permitidos casamentos entre pessoas de religiões diferentes. Mais uma vez, estes têm de casar no estrangeiro, mas apesar disso, os números estão a aumentar. Para alguns religiosos, este tipo de casamentos ameaça a identidade judaica do país, especialmente se forem entre uma mulher judia e um homem goy (não judeu – já que uma pessoa é judia quando a mãe o é).
Há exemplos recentes na cultura. Um efeito deste medo é um romance da autora israelita Dorit Rabinyan, que foi retirado em 2015 da lista de leituras aprovadas para os alunos do secundário, porque a história de amor entre uma judia israelita e um palestiniano era demasiado controversa. Já uma confirmação popular de que o medo existe pode ser vista numa versão satírica da música vencedora da Eurovisão Toy, de Netta Barzilay, Goy, de uma mulher apaixonada por um homem que não é judeu, que teve quase mais sucesso do que a original (pelo menos, antes de Netta vencer o festival).
…e divórcio
Parte da oposição de muitos ao casamento religioso judaico ortodoxo é o facto de a mulher ficar numa posição inferior. Para obter o divórcio, a mulher tem de ter o consentimento do marido. No entanto, segundo a organização Hiddush, que luta pela possibilidade de casamento civil, a maioria dos judeus israelitas não sabe que mesmo quem casa pelo civil no estrangeiro terá de se divorciar num tribunal ortodoxo, submetendo-se assim às regras religiosas na altura da separação. Todos os anos há centenas de mulheres que não conseguem obter o divórcio – em hebraico chamam-se "mulheres acorrentadas".
Shabbat
O Shabbat é o dia reservado para reflexão e passar tempo com a família, e para evitar distracções são proibidas actividades de trabalho ou criativas, incluindo cozinhar ou operar a maioria dos aparelhos eléctricos. O país praticamente pára desde o início do shabbat, ao pôr-do-sol de sexta-feira, até ao seu fim, ao cair da noite no sábado.
Há várias consequências. Uma é por exemplo que a El-Al, a companhia aérea israelita, seja a única do mundo que não voa durante um dia (quando o mundo dos atrasos nos aeroportos se cruza com a obrigatoriedade de aterrar antes do início do dia de descanso pode haver problemas).
Apesar de não haver transportes públicos, há serviços para assegurar necessidades “vitais”, de acordo com a lei – há táxis particulares e serviços de táxis partilhados (sherut, pequenas carrinhas que partem quando enchem). Alguns restaurantes abrem, poucos nas zonas de maioria judaica, mais nas zonas árabes. Uma sondagem recente do Instituto da Democracia de Israel citada pelo Jerusalem Post dizia que a maioria dos judeus inquiridos gostaria de ver algum tipo de transporte público durante este dia (64%) e também minimercados (61%, legislação recente permite que o Ministério do Interior cancele autorizações dadas pelas autoridades municipais), e ainda mais cafés e cinemas (69% e 68%).
Também há aparelhos eléctricos com um “modo shabbat” – fornos, por exemplo – que permite que sejam abertos ou fechados mantendo um nível de calor mas não sendo ligados ou desligados. Há quem use dispositivos como “timers” para a luz eléctrica, e há elevadores especiais que funcionam de modo automático e permitem que sejam usados sem que seja preciso carregar nos botões (o que seria contra as regras). Mais recentemente, há uma aplicação para que se possam trocar mensagens por smartphone (há debate sobre se de facto o uso desta app respeita as regras do shabbat).
O grande “mas” de Israel
Há tradições judaicas conservadoras que não são legalmente permitidas em Israel mas que existem em algumas comunidades – o que Eli Lederhendler chama “o grande ‘mas’ israelita”. São proibidas, "mas". É o caso da separação entre homens e mulheres nos transportes públicos, que é ilegal, mas acontece, por vontade dos passageiros, em linhas entre bairros ortodoxos ou entre um bairro ortodoxo e um grande terminal de transportes. “Os passageiros estão habituados a viver deste modo, e não deixam que algo chamado 'a lei' se interponha no seu caminho”, diz Lederhendler. “Mas isto não é algo que exista no mundo quotidiano ‘normal’ dos restantes”, sublinha – ele próprio nunca viu isso acontecer. Na companhia aérea El-Al também não existe, mas homens religiosos podem pedir por vezes a outros homens que troquem de lugar para evitar ficarem sentados ao lado de uma mulher.
Excepção no Exército
Outro compromisso na fundação do Estado de Israel entre Ben Gurion e os partidos religiosos foi a excepção concedida à então pequena comunidade ultra-ortodoxa de ter de fazer serviço militar obrigatório (que ocupa quase três anos aos rapazes com mais de 18 anos e dois anos às raparigas). Mas com o peso dos ultra-ortodoxos na sociedade a crescer (se são 10% na população em geral, já são 20% nas escolas primárias), o custo de ter os jovens ultra-ortodoxos apenas a estudar a Torah começa a parecer impossível de pagar. Apesar da grande pressão e de haver um compromisso para que os ultra-ortodoxos cumpram nem que seja o serviço cívico, estes recusam – nem sequer querem ser incluídos no registo nacional, sublinha Lederhendler. As manifestações pela manutenção do direito de não fazer serviço militar ou cívico continuam a ocorrer regularmente, às vezes registando violência.
Comida kosher
Há uma série de restrições legais em relação a comida (por exemplo à importação de carne que não seja kosher, ou seja, que não esteja de acordo com as regras judaicas) mas há também espaço para liberdade na restauração e muitos restaurantes judeus escolhem não pedir a certificação kosher por razões de custos.
Por outro lado, há quem siga a lei à letra e assim consiga ultrapassar proibições: a criação de porco não é permitida na terra de Israel; os seculares criam-nos em plataformas de madeira assentes em estacas: assim não estão "na terra".
Ainda segundo as regras religiosas, não se come comida fermentada antes da Páscoa judaica (Pesah), e a lei obriga os supermercados a escondê-la – corredores ficam marcados por secções inteiras de prateleiras cobertas com plásticos. Se os produtos podem acabar por ser vendidos a alguém que os retire de trás da cortina, já é outra questão, mais dependente de quem está na caixa.