Educação de alunos com necessidades educativas especiais: a profecia cumpre-se
Cumpriu-se o “chiquíssimo” discurso neoliberal centrado na educação do “somos todos iguais”.
Em 24 de maio de 2018 o vaticínio, ou seja, aquilo que poderia acontecer de negativo no que diz respeito à educação de alunos com necessidades educativas especiais (NEE), foi aprovado em Conselho de Ministros, sob a forma de Decreto-Lei. Em 22 de junho de 2018, o vaticínio tornou-se realidade ao ser promulgado pelo Presidente da República, tendo sido publicado em Diário da República a 6 de julho (Decreto-Lei n.º 54/2008, de 6 de julho). Cumpria-se a profecia. Cumpria-se o “chiquíssimo” discurso neoliberal centrado na educação do “somos todos iguais”, uma moda refinada que ignora totalmente a “significância da diferença” e tudo o que esta acarreta no que respeita ao sucesso educativo dos alunos com NEE. Uma moda que agrada a alguns grupos e, talvez, a uma grande parte da sociedade, mas que pode traduzir-se numa tragédia com consequências imprevisíveis, trágicas até, para estes alunos.
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Em 24 de maio de 2018 o vaticínio, ou seja, aquilo que poderia acontecer de negativo no que diz respeito à educação de alunos com necessidades educativas especiais (NEE), foi aprovado em Conselho de Ministros, sob a forma de Decreto-Lei. Em 22 de junho de 2018, o vaticínio tornou-se realidade ao ser promulgado pelo Presidente da República, tendo sido publicado em Diário da República a 6 de julho (Decreto-Lei n.º 54/2008, de 6 de julho). Cumpria-se a profecia. Cumpria-se o “chiquíssimo” discurso neoliberal centrado na educação do “somos todos iguais”, uma moda refinada que ignora totalmente a “significância da diferença” e tudo o que esta acarreta no que respeita ao sucesso educativo dos alunos com NEE. Uma moda que agrada a alguns grupos e, talvez, a uma grande parte da sociedade, mas que pode traduzir-se numa tragédia com consequências imprevisíveis, trágicas até, para estes alunos.
O Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, que estabelece o Regime Jurídico da Educação Inclusiva, afasta a conceção de que “é necessário categorizar para intervir”, afirmando ainda que se procura “garantir que o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória seja atingido por todos”. Dois pressupostos se colocam. O primeiro leva-nos a concluir que nesta “diversidade” construída pelo Ministério da Educação (ME), subentenda-se, as NEE são ignoradas (excluídas?) como que a parecer uma questão de preferência educativa ou, pior ainda, uma questão em que as “diferenças significativas” são relegadas para segundo plano, equiparando-as a uma qualquer diferença banal, tal como a altura de um indivíduo, a cor do cabelo, as preferências gastronómicas e demais desigualdades triviais. O segundo ignora, pura e simplesmente, a multiplicidade de características, distribuídas por categorias, que as NEE englobam, conferindo a cada uma delas uma identidade própria e diferentes graus de severidade. Ou seja, as NEE englobam condições específicas de carácter intelectual, emocional, comportamental ou mental ou de caráter físico ou sensorial, inscrevendo-se, contudo, todas elas, num contínuo cujo intervalo se situa entre o ligeiro e o severo. Mais, a existência de uma comorbilidade entre algumas delas pode ser impeditiva de uma boa aprendizagem, caso não sejam consideradas intervenções adequadas. Assim sendo, esta nova Lei, ao tentar tratar todos os alunos de uma mesma forma, não só está a praticar uma discriminação infundada e injusta, como também está a desrespeitar grosseiramente os direitos dos alunos com NEE.
Um outro aspeto digno de nota diz respeito ao facto de esta nova legislação se ter apoiado, sobremaneira, como é referido no seu preambulo, no preceituado na “Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD)”. Aqui, mais dois pontos a destacar. O primeiro prende-se com a forma como, sem qualquer justificação aparente, se “deita fora” a designação “necessidades educativas especiais”, embora na CDPD, no artigo que se refere à educação (Artigo 24) se diga, logo no seu início, que os “Estados devem reconhecer os direitos das pessoas com necessidades especiais (disabilities) à educação”. Ao pretender-se excluir do documento o termo NEE, não só se está a desvirtuar o desígnio explícito na CDPD, mas também se está a reconhecer que, de facto, as NEE, pese embora a sua natureza ou severidade, passam a ser, neste Decreto, inseridas na categoria de “todos” e a constituírem-se, como lá se relata, uma “prioridade política”. Realmente a palavra “todos”, para além de ser usada em “chavões” que em pouco ou nada têm contribuído para a melhoria da condição humana, é ainda usada com frequência em política e em religião, parecendo de há uns anos a esta parte ter-se transferido para a educação com resultados muito negativos no que toca à educação de crianças e adolescentes com NEE. Mary Warnock, uma das maiores especialistas nestas matérias a nível mundial, refere sobre este assunto que este tipo de abordagem à educação de alunos com NEE faz parte da linguagem apelativa da igualdade - tratamento igual, igualdade de oportunidades e não discriminação – tendo, no entanto, como resultado precisamente o efeito contrário quando não se considera a natureza e a severidade dos problemas que um aluno com NEE possa apresentar. O “politicamente correto” a sobrepor-se ao “educacionalmente correto”.
Quanto ao segundo ponto, no que concerne à sujeição do Decreto-Lei n.º 54/2018 ao preceituado no Artigo 24 da CDPD, para além do enigma de não se inserir (ignorar) a designação de “necessidades educativas especiais”, operacionalizando-a, e de não se considerar o papel da educação especial na educação dos alunos com NEE, ele parece apenas considerar, categorizando, contrariamente à substância implícita no texto do diploma (não categorização), as necessidades dos alunos cegos (artigo 14.º) e surdos (artigo 15.º), mantendo-se “mudo” no que respeita às necessidades específicas dos alunos com outro tipo de NEE como, por exemplo, alunos com perturbações emocionais e do comportamento, com autismo ou com dificuldades de aprendizagem específicas (dislexias, disgrafias, discalculias). Ou seja, a categorização reaparece nestes artigos, embora se refira unicamente a uma parcela diminuta dos alunos que se inscrevem no espectro das NEE (cerca de 1 a 2%), discriminando todos os outros.
Finalmente, pese embora alguns aspetos positivos que esta nova Lei incorpora, a minha preocupação recai no facto de ela parecer sustentar ostensivamente a máxima de que “todos” os alunos beneficiam de uma educação de qualidade quando inseridos numa classe regular (inclusão total). Este posicionamento moral e político, neoliberal, direi, parece-me altamente questionável em termos educacionais por, em muitos casos de alunos com NEE significativas, não ser o adequado. E, se não é adequado, como se pode entender que seja benéfico e consequente para os alunos com NEE? Na minha ótica, não consigo entender como um posicionamento deste tipo, que pretende promover um tipo de educação que, segundo a investigação, não tem dado resultados positivos, seja respeitador do que quer que seja. Apenas denota falta de respeito pelos direitos dos alunos com NEE e os de suas famílias.
Termino, com a avaliação sobre este assunto efetuada pela Organização Mundial de Saúde que, num dos seus relatórios sobre a educação de pessoas com NEE, afirma que o conceito de “inclusão total” é irrealista, sugerindo uma abordagem muito mais flexível.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico