A outra notícia sobre os jovens em Portugal
Portugal é dos países onde os jovens menos dependem do Estado para tirar um curso ou sair de casa. É disto que devia tratar a compreensão da suposta dependência dos jovens portugueses face à família. Ninguém depende dos pais em razão de fundamentos “culturais” ou em resultado de uma suposta “identidade nacional”. Uma coisa é fazer algo porque nela se acredita, outra radicalmente diferente é não ter opções.
Comodismo. Dependência. Imaturidade. Falta de iniciativa. Estas são algumas das palavras que ouvimos e lemos em comentários a estudos e a estatísticas (que são coisas diferentes) que vão saindo nas notícias de jornal sobre os jovens. Portugal está, em relação a este grupo etário, sempre no topo ou na base das estatísticas. Está quase sempre entre os países que “mais” ou “menos” qualquer coisa. Ou assim parece. Mas é preciso lembrar que quando não somos base ou o topo da ordenação de um determinado indicador, não somos é notícia. E esta é precisamente uma das falácias envolvidas na leitura de indicadores sobre os jovens. Em inúmeros indicadores os jovens portugueses estão “bem” situados ou apresentam valores na “média” da Europa ou da OCDE. Ou encontram-se ainda a ultrapassar certos problemas mais rapidamente do que outros países. Isto nota-se, por exemplo, em indicadores que são ou eram mais urgentes e relevantes para o nosso país (por exemplo, a taxa de desemprego e taxa de desemprego de longa duração encontram-se, segundo dados do Eurostat de 2016, ligeiramente acima da média mas em franca tendência decrescente; o impacto da classe social na literacia dos jovens de 15 anos está, segundo dados do PISA de 2015, a diminuir). Outras vezes, o facto de o país se encontrar na base de um determinado ranking pode até não permitir apreciações estatísticas ou sociológicas relevantes, ou autorizar leituras comparativas com outros países com um mínimo de significado (ou significância estatística). Estar no topo ou na base do ranking pode, na verdade, ser uma “não-notícia”. Nos estudos da juventude, são vários os autores que têm demonstrado este facto: as questões centrais e mais decisivas podem precisamente decorrer da análise de dados intermédios. Por exemplo, a obsessão com os “NEET” (Not in education, employment or training) ou com os “tidy” (expressão usada como referência às trajetórias mais lineares e favorecidas) tem colocado outras questões em segundo plano. Mal.
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Comodismo. Dependência. Imaturidade. Falta de iniciativa. Estas são algumas das palavras que ouvimos e lemos em comentários a estudos e a estatísticas (que são coisas diferentes) que vão saindo nas notícias de jornal sobre os jovens. Portugal está, em relação a este grupo etário, sempre no topo ou na base das estatísticas. Está quase sempre entre os países que “mais” ou “menos” qualquer coisa. Ou assim parece. Mas é preciso lembrar que quando não somos base ou o topo da ordenação de um determinado indicador, não somos é notícia. E esta é precisamente uma das falácias envolvidas na leitura de indicadores sobre os jovens. Em inúmeros indicadores os jovens portugueses estão “bem” situados ou apresentam valores na “média” da Europa ou da OCDE. Ou encontram-se ainda a ultrapassar certos problemas mais rapidamente do que outros países. Isto nota-se, por exemplo, em indicadores que são ou eram mais urgentes e relevantes para o nosso país (por exemplo, a taxa de desemprego e taxa de desemprego de longa duração encontram-se, segundo dados do Eurostat de 2016, ligeiramente acima da média mas em franca tendência decrescente; o impacto da classe social na literacia dos jovens de 15 anos está, segundo dados do PISA de 2015, a diminuir). Outras vezes, o facto de o país se encontrar na base de um determinado ranking pode até não permitir apreciações estatísticas ou sociológicas relevantes, ou autorizar leituras comparativas com outros países com um mínimo de significado (ou significância estatística). Estar no topo ou na base do ranking pode, na verdade, ser uma “não-notícia”. Nos estudos da juventude, são vários os autores que têm demonstrado este facto: as questões centrais e mais decisivas podem precisamente decorrer da análise de dados intermédios. Por exemplo, a obsessão com os “NEET” (Not in education, employment or training) ou com os “tidy” (expressão usada como referência às trajetórias mais lineares e favorecidas) tem colocado outras questões em segundo plano. Mal.
Não obstante a posição da juventude em Portugal não ser assim dramática em vários indicadores na transição para a vida adulta, este grupo etário continua a ser um alvo permanente de discursos fatalistas, condescendentes e simplistas, presentes por exemplo em comentários dissimulados de saber científico. Tal sucede, em parte, em resultado da aparente validação científica de leituras estatísticas prematuras ou irrefletidas. Reflexo, talvez, da imaturidade das práticas de comunicação de ciência em Portugal, algumas leituras “científicas” prestadas ah doc a dados estatísticos oficiais publicados por grandes inquéritos europeus ficam muito aquém da missão disciplinar a que as ciências sociais se propõem: confrontar o senso comum, questionar o óbvio, não embarcar em simplismos e superficialidades. Não sacrificar o rigor às exigências do consumismo informativo ou da comunicação política. Simplificar a mensagem não significa simplificar a realidade. Interpretar cientificamente não é o mesmo que especular. Explicar não é o mesmo que deduzir. E compreender não é o mesmo que confirmar interpretações existentes.
Os “fatores culturais” são sistematicamente avançados para explicar as diferenças nas transições para a vida adulta em Portugal face a outros países da Europa. São-no por investigadores estrangeiros, com mais dificuldades em aceder a resultados mais qualitativos ou mais detalhados seja sobre o processo de saída de casa dos pais em Portugal, seja sobre a pertinência dos rótulos a que Portugal ainda é sujeito – alegado país católico e conservador, com redes familiares muito fortes, dependências intergeracionais acentuadas, etc.). Mas os “fatores culturais” são também invocados por alguns investigadores portugueses. Para estes parece mais fácil e rápido usar os dados disponíveis para refletir sobre questões como a dependência dos jovens face à família e a saída de casa dos pais. O reconhecimento de uma multiplicidade de fatores explicativos para a permanência dos filhos em casa dos pais por tempos mais longos do que ocorre no resto da Europa é inconveniente. Persista-se numa explicação fácil: “fatores culturais”. Os tais (quais?) “fatores culturais” que são tão fortes que explicam, sem subtilezas nem complexidades, por que é que os jovens portugueses preferem morar com os pais quando já têm mais de 25 anos, quando já têm uma identidade formada, já têm vida social e sexual. Normalmente, daqui decorre uma lógica tão simples quanto perigosa: se preferem, a escolha foi deles. Se foi escolha deles, é problema deles. Para que queremos políticas de juventude?
Devemos recusar estas leituras e suas consequências sem hesitar. Resumamos os “fatores culturais” à sua insignificância relativa, porque há muitos outros fatores de efeito comprovado na “opção” de ficar mais tempo em casa dos pais, sendo deles financeiramente dependente. Recusemo-los ainda porque a sua invocação não é particularmente rigorosa de um ponto de vista científico. Entre outras razões, não é possível associar valores culturais e sociais a dados estritamente demográficos. Ainda mais difícil é sustentar o seu poder causal. Existem muitos fatores que conspiram para que os jovens em Portugal permaneçam mais tempo em casa dos pais até saírem de forma definitiva (nem sempre o é, claro). Vamos percorrê-los brevemente.
1. Racionalidade económica: sempre que há uma mudança de casa (nem precisa de ser a primeira), avaliam-se as condições financeiras para tal. Não são só os bancos que sabem avaliar “taxas de esforço” ou “risco”. Os indivíduos (jovens e menos jovens) fazem cuidadosamente essa avaliação, ainda que de forma porventura menos sofisticada ou profissional. Em estudos sobre pobreza e situações de sem abrigo entre os jovens, a racionalidade económica é vista, aliás, como um fator preventivo. Ao ficarem em casa dos pais mais tempo, os jovens portugueses estão a proteger-se, de facto, de situações de pobreza ou de exclusão social.
2. Mercado de habitação: Uma das razões pelas quais noutros países é mais fácil sair de casa dos pais e é mais fácil fazê-lo mais cedo é porque existem condições propícias a isso: por exemplo, mercados de habitação mais favoráveis à mobilidade geográfica ou habitações de transição, mais pequenas, bem situadas, mais viradas para o arrendamento. Algumas destas condições são ainda mais favoráveis para os estudantes do ensino superior, com apartamentos que pertencem às universidades, arrendamentos co-financiados por estas ou ainda bolsas de estudo que permitem essa despesa.
3. País pequeno com relativa dispersão de estabelecimentos de ensino superior: quando comparado com outros países, Portugal tem uma oferta de ensino superior relativamente dispersa pelo país. A proximidade de um destes estabelecimentos à residência habitual com o agregado familiar de origem, ao diminuir as despesas do agregado na frequência de ensino superior, pode ser o fator que a possibilita.
4. Mercado de trabalho: precário e instável. Em suma, não propício à assinatura de contratos de empréstimo ou contratos de renda, que são compromissos financeiros de longa duração. Para além do mais, trata-se de uma país com uma fraca tendência para o part-time, que seria o mais adequado às entradas graduais no mercado de trabalho e/ou à conciliação entre o estatuto de trabalhador e o de estudante.
5. Continuidade histórica. Para simplificar: segundo dados do European Social Survey, os jovens suecos têm há várias gerações vindo a seguir maioritariamente uma determinada ordem nas suas transições para a vida adulta. Saem de casa dos pais antes de começar a trabalhar. Se não é do próprio rendimento que vivem em casas autónomas e também não estão dependentes da família, essa opção resulta de outra condição: a intervenção do Estado. O contrário acontece há várias décadas em Portugal: entrar para o mercado de trabalho é, tem que ser aliás, a primeira transição para a vida adulta. É do rendimento que depende toda a subsequente sequência de transições para a vida adulta. Ou seja, a co-residência com os pais não pode ser considerada sinónimo de dependência, nem emocional, nem financeira.
Assim, os estudantes de ensino superior de países como a Finlândia saem de casa dos pais, por um lado, porque têm que o fazer (as faculdades estão concentradas em certas cidades e não dispersas pelo país), e por outro, porque podem fazê-lo sem sobrecarregar financeiramente os pais. Podem fazê-lo acedendo simplesmente aos seus direitos. Acedem às bolsas de estudo e a subsídios de manutenção por estarem deslocados da família de origem; recorrem a incentivos ao arrendamento; trabalham em part-times muitas vezes disponibilizados pelas próprias faculdades (cantinas, bibliotecas, tutorias, docência, etc.). Não são tão “dependentes da família” porque são muito mais “dependentes” do Estado. Só que pelos vistos é “cultural” chamar “adeptos do assistencialismo” aos portugueses que acedem a subsídios, bolsas e outros direitos sociais; e “autónomos e independentes” aos finlandeses que fazem exatamente o mesmo, quase sem exceção. E fazem-no definitivamente sem culpa, com toda a justeza.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico