Um dia de cada vez — o “Brexit” à moda de Theresa May
Desde que assumiu a chegia do governo britânico, com o ancargo do "Brexit", Theresa May acumulou semanas difíceis. A que passou foi mais uma, com ministros a demitirem-se por discordarem da sua decisão de manter laços com Bruxelas e um esquisito encontro com Donald Turmp, que lhe sugeriu que em vez de sair da UE devia processá-la.
Em Outubro do ano passado, Theresa May sentou-se sossegadamente a bebericar chá num canto da pequena sala do congresso do Partido Conservador em Manchester. A primeira-ministra britânica tinha acabado de fazer um discurso destinado a restaurar a sua autoridade sobre um partido dilacerado pela decisão do país de sair da União Europeia e que resvalava nas sondagens.
Foi um desastre. Lutou contra uma tosse persistente e várias letras da frase escrita atrás dela em maiúsculas — “CONSTRUIR UM PAÍS PARA TODOS” — caíram, arrancando gargalhadas na audiência.
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Em Outubro do ano passado, Theresa May sentou-se sossegadamente a bebericar chá num canto da pequena sala do congresso do Partido Conservador em Manchester. A primeira-ministra britânica tinha acabado de fazer um discurso destinado a restaurar a sua autoridade sobre um partido dilacerado pela decisão do país de sair da União Europeia e que resvalava nas sondagens.
Foi um desastre. Lutou contra uma tosse persistente e várias letras da frase escrita atrás dela em maiúsculas — “CONSTRUIR UM PAÍS PARA TODOS” — caíram, arrancando gargalhadas na audiência.
Nunca pareceu tão fraca.
Quando o autor dos seus discursos, na altura Chris Wilkins, entrou na sala onde a primeira-ministra estava sentada com o marido e um grupo de assessores, o clima era tenso. Por um instante, pensou que ela estava à beira de desistir.
Mas May encolheu os ombros. “Ela disse: ‘Não há nada que eu possa fazer. A culpa não é minha. É daquelas coisas que acontecem’”, recorda Wilkins.
Como noutras ocasiões, não houve emoção, dizem meia dúzia de pessoas que trabalham ou trabalharam com May. May, dizem, enfrenta as críticas, as catástrofes e os sucessos da mesma maneira — aceita o que o dia lhe dá e continua a trabalhar.
Em entrevistas, falam da sua resiliência, sentido do dever e atenção aos pormenores. Explica que os traços que permitiram a May recuperar do desastroso discurso de Manchester também dão pistas sobre a sua abordagem à saída do Reino Unido da UE. Trabalhar todos os pormenores, amortecer todos os obstáculos e avançar.
Os críticos, dentro e fora do Partido Conservador, dizem que May é uma pessoa distante a quem falta visão, que é um robô — “Maybot”. Falam numa primeira-ministra acidental a fazer um trabalho que mais ninguém quis e que anda aos tropeções na negociação com Bruxelas.
A sua mais recente tentativa para chegar a um acordo para o “Brexit” foi ensombrada pela demissão de dois dos seus principais ministros, que saíram em protesto com a sua vontade de aceitar manter laços entre o Reino Unido e a UE. David Davis, o ministro negociador do “Brexit”, e o chefe da diplomacia, Boris Johnson, ambos pró-“Brexit”, demitiram-se um a seguir ao outro e May substituiu-os rapidamente. Mas isso significa que agora tem dois ferozes opositores que, de fora do Governo, estão livres para lançar ataques.
Mais uma vez, a sua posição ficou tremida, apesar de ter conseguido até agora evitar uma rebelião mais alargada.
O Reino Unido tem menos de nove meses para encontrar o seu lugar no mundo fora da UE. A 29 de Março de 2019 deve deixar o bloco a que se juntou há mais de 40 anos e a tarefa é ciclópica: o grosso da economia e das leis que regem o comércio e o trabalho estão relacionadas com as dos parceiros europeus. A pessoa no centro deste turbilhão é May, e a sua calma e reserva são uma peça-chave nesta redefinição do Reino Unido.
“Ela apanhou com mais problemas do que qualquer outro primeiro-ministro de que tenho memória — e nenhum deles foi criado por ela”, disse Ken Clarke, um veterano do Partido Conservador. Clarke esteve à frente de vários ministérios, por exemplo foi secretário de Estado e ministro das Finanças numa carreira política de cinco décadas.
May, que não aceitou ser entrevistada para este perfil, manteve-se firme perante as demissões. E disse no Parlamento que avançava com o seu plano para o “Brexit”, “o “Brexit certo”, considerou.
Anti-Cameron
Quando os britânicos aprovaram, no referendo de Junho de 2016, a saída da União Europeia, o Partido Conservador ficou dividido. Do meio do caos emergiu May, a opção “estável” para suceder a David Cameron como líder do partido e do Governo.
Como Cameron, May fez campanha pela permanência na UE. Mas depois de ter sido nomeada primeira-ministra, em Julho de 2016, prometeu respeitar a vontade dos cidadãos. Decidiu manter o seu estilo discreto, que contrastou com o do seu antecessor.
“Não vou às televisões. Não ‘fofoco’ à hora do almoço. Não bebo copos no bar do Parlamento. Não tenho o coração ao pé da boca. Limito-me a fazer o trabalho que tenho à frente”, disse certa vez.
May, que tem 61 anos, não pertence a uma facção do partido e, apesar de ter sido ministra de Cameron durante seis anos, não fazia parte do grupo dele. Não gosta de entrevistas, dizem os assessores, antigos e actuais, e não se sente à vontade nas ocasiões sociais a que o cargo obriga.
Compare-se as agendas de Cameron e May e percebe-se a diferença de estilo entre ambos. Durante um período de três meses, entre Abril e Junho de 2016, Cameron teve mais de dez entrevistas com televisões e jornais nacionais e dois actos sociais na residência oficial de Downing Street. No mesmo período de 2017, May deu uma entrevista a um órgão de comunicação social regional e não houve festas em Downing Street. Uma fonte de Downing Street disse que a primeira-ministra está “sempre ocupada e sempre em recepções, a maior parte delas de beneficência. Talvez não tenha três jantares por semana com donos de jornais, mas cada um tem o seu estilo”
Alexander Temerko, um cidadão britânico originário da Ucrânia que é um dos grandes contribuintes para os cofres do Partido Conservador, comparou o comportamento dos dois líderes em reuniões de dadores. May é reservada, Cameron era acessível. May faz “o seu discurso, distribui uns cumprimentos, passeia-se um bocado, diz umas palavras e vai-se embora”. “Com David, podia tirar-se muitas fotografias. Ele é mais afável.”
Frances O’Grady, secretária-geral da maior central sindical britânica, o Trades Union Congress, lamenta só ter estado com May uma vez. “Já me pus a pensar que já estive com Angela Merkel, com o Presidente da Irlanda e com outras pessoas mais vezes do que com a nossa primeira-ministra.”
O porta-voz de May disse que ela se reúne regularmente com os dirigentes da indústria para apoiar os trabalhadores e os seus direitos.
Por vezes, a opinião pública confunde a reserva de May com frieza, o que a prejudica, diz o antigo ministro e um assessor. Quando um incêndio matou 71 pessoas em Londres em Junho de 2017, muitos acusaram May de não ter empatia. No primeiro aniversário do incêndio, numa rara demonstração de emoção, May disse que vai arrepender-se “para sempre” por não ter estado com os sobreviventes logo após a tragédia.
Dois colegas de partido disseram que May é uma companhia desajeitada. Se só estiverem apenas duas pessoas numa sala, contaram, “ela fica em silêncio até lhe perguntarem qualquer coisa”.
Há uma imagem da sua primeira cimeira da UE, em Dezembro de 2016, em que está sozinha e sem saber o que fazer às mãos, enquanto os outros líderes conversavam. Os críticos viram naquela imagem um sinal do isolamento do Reino Unido.
Mas manter as distâncias serve os seus propósitos. Nas negociações do “Brexit”, que um colega descreveu como um jogo de xadrez em três dimensões, esta contenção ajuda. A sua abordagem é falar pouco, concentrar-se nos pormenores e deixar o jogo da diplomacia para os outros membros da equipa, por exemplo, o conselheiro para o “Brexit” Oliver Robbins.
A fonte de Downing Street disse: “Olly Robbins investe muito nas suas relações com os outros colegas ‘sherpas’, Tim Barrow [o embaixador britânico na UE] usa o seu charme junto dos diplomatas e a primeira-ministra fala com os líderes.”
May não é uma novata em questões da UE. Durante os seus seis anos como ministra do Interior, participou em muitas reuniões do Conselho de Justiça e do Interior, onde se desenvolvem as políticas da União sobre segurança e crime. Foi ali que ganhou alergia ao jargão europeu. No início de 2016, a equipa dos discursos escreveram a palavra “solidariedade” num discurso que ia fazer. May rejeitou a palavra, disse que “na UE há muitas reuniões onde se está sempre a falar de solidariedade”.
Funcionários europeus, descontentes com a decisão do Reino Unido de sair, concordam que May está sempre por dentro de todos os detalhes nas conversações. Porém, acrescentam, May e o seu Governo têm muitas vezes falta de entendimento sobre a forma como o bloco funciona. Os críticos, alguns do seu partido, dizem que as raízes rurais inglesas de May a tornam inadequada para a diplomacia europeia.
O campo
Se queremos entender May, temos de ir a Maidenhead, dizem duas pessoas que a conhecem bem. Trata-se da cidade junto ao Tamisa, a oeste de Londres, que May representa no Parlamento desde 1997. Sonning, alguns quilómetros para cima, é a terra natal que adoptou. Ali, casas brancas misturam-se com mansões — um exemplo perfeito do campo inglês na região Sul.
“Ela adora aquilo”, diz Richard Kellaway, consultor de armazenamento de químicos que faz parte do conselho municipal e preside à Associação de Conservação de Maidenhead.
Quando May se sente em baixo — como depois do discurso de Manchester e do incêndio na torre Grenfell —, refugia-se no trabalho e em Sonning, dizem os assessores. O marido, Philip May, é um grande apoio, segundo os que conhecem bem o casal; durante a semana, está muitas vezes a seu lado no n.º 10 de Downing Street. A maior parte dos fins-de-semana são passados em Sonning. Ali, May tem uma rotina, indo à missa ao domingo e fazendo compras no supermercado Waitrose na vizinha Twyford. Costuma aparecer nos actos sociais locais.
Depois de ter ido a correr para Bruxelas numa manhã de Dezembro para resolver mais uma reunião de crise sobre o “Brexit”, May regressou a Maidenhead a 8 de Dezembro para se tornar membro honorário do ramo local dos Rotários. Em Abril, depois de autorizar bombardeamentos aéreos na Síria, voltou para participar na inauguração da exposição de Verão na galeria de arte Stanley Spencer, em Cookham.
“Tinha dormido umas duas horas”, disse Kellaway.
Em Maio e Junho, May debatia-se com outra crise do “Brexit”, desta vez sobre a fronteira entre a Irlanda do Norte, que faz parte do Reino Unido, e a Irlanda, que é membro da UE. Ainda assim encontrou tempo para inaugurar a recém-remodelada Igreja de Maidenhead, visitar uma organização não governamental local e assistir ao Maidenhead Duck Derby [uma corrida de patos de plástico lançados ao Tamisa].
Ainda não interiorizou bem que é primeira-ministra. Não gosta de ter um plano de segurança e ainda verifica uma e outra vez se as portas da sua casa de estilo Tudor em Sonning estão bem fechadas, apesar de ser provavelmente uma das casas mais bem protegidas do Reino Unido.
Sendo uma entusiasta da cozinha, não se sente bem na elegante cozinha que Cameron e a mulher instalaram em Downing Street; diz que não é uma cozinha para cozinhar. Também não é fã de Chequers, a mansão de campo do século XVI usada pelos primeiros-ministros. Não gosta de dizer palavrões. E corre atrás dos colaboradores se estes deixam alguma coisa no seu escritório. É uma criatura de hábitos, que muitas vezes pede a mesma salada de frango da cadeia de restaurantes de comida embalada Pret a Manger.
“Acham?”
Os colaboradores dizem que tem uma memória brilhante. Kellaway, o conselheiro municipal de Maidenhead, lembra-se de uma vez a ouvir repetir a letra de um rap que crianças de uma escola lhe cantaram. Porém, a forma mecânica como está em frente das câmaras, levaram a imprensa a dar-lhe o nome de “Maybot” — e o rótulo pegou.
A equipa de May decidiu que seria através de discursos que iria transmitir os seus argumentos. Um método mais de acordo com o estilo de May do que a política do Twitter de alguns líderes, como o Presidente dos EUA, Donald Trump. Wilkins explica o método de May. Sentava-se com ele e com o seu chefe de gabinete para definir as ideias principais do tema. Os dois homens, depois, escreviam o rascunho que May lia ao pormenor, dizendo rapidamente o que pensava do texto.
May sabia que o discurso de Manchester ia ser um dos mais importantes do seu mandato. Queria afirmar a sua autoridade perante o partido depois do fraco resultado eleitoral das eleições, quatro meses antes. Os conservadores conseguiram a maior parte dos lugares no Parlamento, mas dependem de um pequeno partido da Irlanda do Norte para conseguir a maioria.
Ao preparar o discurso, Wilkins pediu a May uma narrativa para explicar a sua motivação como política. A sua resposta foi: “Quando as pessoas me perguntam porque me sujeito a isto — às longas horas, à pressão, à crítica e aos insultos que inevitavelmente surgem com este trabalho —, digo-lhes que é para erradicar a injustiça e para dar voz a todos.”
May explicou a sua visão para o futuro do país, “o sonho britânico”, falando da avó, uma criada que teve três netos professores e uma primeira-ministra.
“Todos nós pensámos: ‘Isto é brilhante.’ E ela respondeu: ‘Acham?’”, recordou Wilkins. “Sim, é humano, e é disso que se trata” — mas May não percebeu e, infelizmente, poucos se lembram dessa parte do discurso. Lembram-se da tosse, do cenário a cair.
May inspira lealdade na equipa, pois, disseram vários colaboradores, é cem por cento profissional. Mas, fora dessa pequena equipa, tanto profissionalismo soa a frieza. Um colega de partido, crítico de May, descreveu-a como “uma esfinge a que falta o enigma”.
O seu ar imperturbável, porém, tem a sua utilidade neste processo tenso e complexo que é o “Brexit”. Como disse um membro do Partido Conservador que discordou da forma como May está a tratar o “Brexit”: “Uma coisa é certa, segue sempre em frente.”
Com William James/Reuters Investigates