A Sophia de que o people lá do bairro gostava
A Biblioteca Infanto-Juvenil Sophia de Mello Breyner Andresen existiu na Quinta do Armador, em Lisboa, durante dez anos. Quis ser um espaço comum às crianças de várias etnias daquele bairro de realojamento e, mesmo com dificuldades, cumpriu a missão. Fechou há uma década, de forma inglória.
No bairro havia pouca coisa para a malta fazer. Como todos os adolescentes, André e Jorge gostavam era de estar com os amigos, ver televisão e jogar à bola. Depois das aulas, com os pais fora, as opções eram escassas: ou se enfiavam em casa, ou faziam uma peladinha por ali, ou iam para casa de alguém que tivesse a sorte de ter consola. Na rua, entre toques na bola e calduços, havia sempre tempo e oportunidade para tentações mais perigosas, bulhas e problemas.
O primeiro sítio a quebrar este ciclo foi uma biblioteca.
Uma biblioteca que não o era, porque era muito mais do que isso. “Aquilo era uma biblioteca, mas parecia mais uma associação de protecção de jovens. Se nós tivéssemos problemas em casa, eles viam sempre como é que podiam ajudar”, diz André, hoje com 25 anos. “Aconteceu várias vezes faltar à escola para ir para ali. Era o que batia, o que estava na moda. Jogávamos à bola, víamos filmes, podíamos usar a Net. E podíamos ler livros”, ri-se. O amigo Jorge, um pouco mais velho, diz peremptório: “O people encontrava-se ali, sempre!”
“Marcou uma geração. Quem passou por lá não esquece”, resume André. Onze anos depois de ter fechado, a Biblioteca Infanto-Juvenil Sophia de Mello Breyner Andresen ainda é recordada com carinho por quem a conheceu num rés-do-chão comercial da Avenida Vergílio Ferreira, na Quinta do Armador, em Chelas.
A Sophia encerrou no Verão de 2007, uns meses antes de completar uma década de vida, de forma inglória. Mas abrira cheia de ambição, num bairro municipal que ainda não tinha consciência de que era um bairro, para ser um espaço comum às crianças e jovens de origem cigana, africana, indiana, macaense e não só que ali tinham ido cair de repente.
As torres da Quinta do Armador começaram a ser construídas em 1994 e logo no ano seguinte chegaram pessoas provenientes dos precários e caóticos bairros que existiam ali em redor: Quinta da Montanha, Quinta da Holandesa, Quinta dos Cravos, Quinta do Monte Coxo, bairros da Bela Vista, Azinhaga das Teresinhas, Flamenga, Malapos e Marapinhas, Passarinhos e Noiva.
A biblioteca infanto-juvenil abriu em Dezembro de 1997, inicialmente com duas salas. Pouco depois chegava Teresa Santos, que coordenou a Sophia até ao fim. “A biblioteca trabalha o livro, só que ali tínhamos de fazer tudo ao contrário: começar pelos jogos e depois saltar para o livro”, resume. Os livros demoraram a ser o principal atractivo, se é que alguma vez o foram. Ali trabalhavam pessoas com profissões invulgares para uma biblioteca: uma psicóloga, uma socióloga, dois animadores, apenas uma técnica bibliotecária e Teresa Santos a coordenar. “Do pessoal das bibliotecas, ninguém queria ir para a Sophia. As pessoas não estão preparadas para ir trabalhar num local daqueles, que não tinha nada que ver com outro tipo de biblioteca”, diz a antiga responsável.
Chamavam-lhe “biblioteca”, mas era por simpatia. Mesmo a Câmara Municipal de Lisboa nunca escondeu que a intenção era que a Sophia fosse mais do que um sítio onde havia livros para crianças e jovens. “A abertura de um equipamento deste tipo, destinado a um segmento tão específico da população, integra a preocupação sempre demonstrada pela Câmara de Lisboa de fomentar todas as acções e iniciativas que concorram para o reforço da coesão social e da solidariedade activa”, lê-se no site Revelar Lx, gerido pela autarquia, que aparentemente não se apercebeu de que a biblioteca já fechou há 11 anos. “A biblioteca tem sido o porto de abrigo para muitos meninos e meninas de várias etnias que ali passaram a morar, vindos de outras zonas da cidade.”
Numa época em que os ATL não estavam generalizados e a Internet e o Magalhães eram miragens, só a rua ou a biblioteca eram alternativas. Teresa Santos recorda que, quase todos os dias, especialmente no Verão, já tinha dois ou três miúdos “encostadinhos à porta” antes de a Sophia abrir. “Começou por ser dos zero aos 12 anos, mas eles não percebiam porque é que ao fim dos 12 anos não podiam entrar. E, sendo um bairro complicado, eles criavam-nos mais problemas na rua do que na biblioteca, então abrimos o leque e passou a ser dos três aos 17 anos.”
Rapidamente perceberam a necessidade de ter uma psicóloga por lá. Cláudia Moreira, que trabalhava num ATL da Gebalis (empresa municipal que gere os bairros sociais lisboetas), começou a interessar-se pela Sophia e candidatou-se à vaga. “Fazíamos actividades de promoção da leitura e escrita, tínhamos apoio escolar e prevenção de comportamentos de risco”, relata. Mas isso era apenas uma pequena parte do emprego. “Havia muita fome. Havia miúdos que eram largados ali de manhã e só iam para casa à noite. Fartei-me de pedir comida à DanCake.”
Diz Teresa Santos: “Ao princípio, quando eles iam para a biblioteca, nós tentávamos que alguém da família aparecesse lá para ficarmos com um contacto — morada, telefone, por aí fora — e eu, inocentemente, ligava para as pessoas — quando via que as crianças ficavam até à uma, duas, três horas e não iam almoçar — e perguntava ‘então o seu filho não vai almoçar?’ e a resposta era ‘ah ele já tomou o pequeno-almoço, depois janta’.”
Porto de abrigo
Ao fim de uns tempos, a biblioteca cresceu e passou a ter quatro salas. A da entrada era a recepção e a biblioteca propriamente dita. Na seguinte, foram instalados uns dez computadores com acesso à Internet. A terceira estava reservada para ateliers. A quarta servia como depósito.
Sónia Fernandes passou fugazmente pela Sophia enquanto responsável pelo Programa Escolhas, uma iniciativa estatal lançada em 2001 destinada a crianças e jovens em “contextos socioeconómicos vulneráveis”. Foi através do Escolhas que a Sophia ganhou computadores e outras actividades, como aulas de capoeira, dança, passeios, visitas a museus. “Tínhamos sempre a casa cheia. Estávamos sempre a querer saber se iam à escola, se não faltavam, se tinham boas notas”, recorda. “Às vezes, estavam miúdas de quatro anos a pintar e, ao lado delas, outras de 16, às vezes já mães, a pintar também.”
Quem trabalhou na biblioteca lidou com histórias de violação, incesto, gravidezes na adolescência, fome, insucesso escolar. Cláudia Moreira nunca esqueceu o dia em que uma rapariga, que não teria mais do que 15 ou 16 anos, se acercou dela e lhe contou que estava à espera de um bebé. “Acompanhei todo o processo de ela ter ficado grávida sem querer.” O mesmo sucedeu a Teresa Santos, que se lembra de casos de “desleixo pelas crianças, falta de cuidados, falta de alimentação”.
Para os antigos funcionários, a experiência foi agridoce — dura, mas gratificante até certo ponto. “Estive várias vezes para desistir, a adaptação foi muito difícil, tivemos muitos problemas”, admite Cláudia Moreira. Por vezes, sem motivo aparente, instalava-se o caos. “Os jovens vinham em bando, eram mal-educados, confrontavam-nos, olhavam para nós com ar de maus. Nunca nos tocaram, mas deitavam cadeiras e estantes abaixo, uma vez até dispararam um extintor lá dentro.”
Tão depressa havia estes recontros mais tensos como a biblioteca se tornava o tal porto de abrigo. “Vinham-nos pedir tudo: escrever cartas, preencher o IRS, éramos uma porta aberta”, diz Cláudia.
Gostar do bairro
Ironicamente, aquele rés-do-chão de portas e grades vermelhas da Avenida Vergílio Ferreira é hoje a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Lisboa oriental. Lá dentro não há nada que indicie a antiga existência da Sophia. Cá fora, uma marca mais perene: a palavra “BIBLIOTECA” está gravada na calçada em pedra negra. Por cima tem um tapete.
António Augusto Pereira apoia-se na grade fronteira ao espaço e fala da sua vida de autarca pela CDU, que começou em 1979. “Quando eu vim para Marvila, em 1983, isto não estava nada construído, era mesmo uma quinta. Eu vi nascer e crescer o Bairro do Armador”, diz.
Ainda hoje aquele sítio é uma ilha. Fica no topo de uma encosta que tem, de um lado do vale, a colorida urbanização das Olaias, desenhada por Tomás Taveira, e do outro, o também colorido Bairro do Condado. Os primeiros lotes do Armador também não escaparam à moda então vigente de colorir as fachadas a amarelo e cor-de-rosa. As últimas construções, datadas de 1998, já são monocromáticas. De acordo com dados disponibilizados no site da Gebalis, o bairro tem 84 prédios, com 1336 apartamentos, onde vivem cerca de 3741 pessoas.
Em 1997, quando António Pereira ganhou as eleições para a Junta de Freguesia de Marvila (15 dias depois da inauguração da Sophia), havia por todos aqueles bairros, herdeiros directos das velhas barracas, “um índice de analfabetismo altíssimo” e “muito poucos hábitos de leitura”. A junta lançou então umas salas de alfabetização, frequentadas tanto por crianças e jovens como por adultos e idosos, que começaram por ter a missão de ensinar a ler e a escrever.
“Quando há um realojamento, as pessoas demoram uns 20 a 30 anos a gostar do bairro para onde vão”, diz o ex-presidente. “Fazíamos muita, muita coisa para as pessoas aprenderem a gostar do bairro.” Apesar de a biblioteca não ser responsabilidade da junta e de esta ter criado um espaço jovem “para a rapaziada com 12, 13, 14 anos”, António Pereira diz que todos ali trabalhavam para o mesmo. “Tentámos sempre manter as crianças ocupadas, era uma preocupação. Estávamos todos imbuídos do mesmo espírito: como é que vamos fazer com que esta miudagem cresça e aprenda a ouvir, a viver em sociedade.”
Um parente pobrezinho
Na Sophia, esse objectivo foi parcialmente conseguido. “Aquela biblioteca fez maravilhas por aqueles miúdos. Pelos que lá iam, que eram a fina flor do bairro, porque os que lá iam eram os que ainda achavam que aquilo tinha alguma importância”, comenta Teresa Santos. “Um dia chegou-me lá um miúdo, no ano em que fez 18 anos, e diz-me assim: ‘Dona Teresa, hoje levei cartão amarelo.’ ‘Cartão amarelo?’ ‘Sim!’ Ele tira muito orgulhoso o bilhete de identidade e diz: ‘Consegui registar-me!’”
Naquele espaço de quatro salas aconteciam diariamente “pequenos milagres”, como lhe chama Maria Santos Silva, que trabalhou na biblioteca já na fase final, durante ano e meio. “Para trabalhar num contexto destes, é preciso ter recursos de qualidade. A Sophia era um parente muito pobrezinho da rede de bibliotecas”, diz. “Os miúdos estavam ali caídos porque não tinham mais nada. E a biblioteca não tinha muito para lhes oferecer”, continua. Quando Maria por lá passou, já o Programa Escolhas tinha mudado de poiso — e com ele foram-se os computadores, que eram uma das grandes atracções do espaço.
Só ficaram por lá dois computadores velhos, cuja utilização era disputada entre todos, o que por vezes originava conflitos. Mas Maria Santos Silva tem recordações felizes da Sophia e do bairro. “Os miúdos brancos, negros e ciganos davam-se todos. Não havia discriminação. Podia não haver promoção da leitura, porque não havia meios, mas em termos humanos havia de facto uma boa relação. Havia vínculos afectivos.”
E houve vários sucessos, apesar de tudo. A biblioteca editou durante vários anos o jornal A Malta da Breyner, que nas palavras de Cláudia Moreira “foi um espectáculo, porque os miúdos é que escreviam as notícias e tomavam o comando de tudo”. “Era um jornal com qualidade”, orgulha-se Teresa Santos, que refere ainda a realização de cursos de informática, de sexualidade e educação ambiental, ateliers sobre livros e contos, jogos sobre tolerância, uma feira de profissões e curtas-metragens.
Apesar de se queixar de falta de recursos e de interesse da autarquia pelo projecto da Sophia, Maria odiou o mês em que trabalhou noutra biblioteca e, quando voltou ao Armador, regressou “muito feliz”. Foi já depois do episódio dos tiros.
Os tiros não mataram Sophia
Certo dia, já em 2007, um funcionário veio cá fora apanhar ar, esticar as pernas ou fumar um cigarro, quando ouviu dois disparos, vindos de ali perto.
Pá. Pá.
O funcionário foi-se embora, recusou-se até a voltar ao bairro. “Foram dias de medo, muito complicados, intimidatórios”, afirma Cláudia Moreira. “Os jovens sabiam que isso tinha acontecido e que nós tínhamos medo”, acrescenta. Já não era a primeira vez que assistiam a situações tensas por ali, conta Teresa. “Uma vez saí de carro para ir almoçar, estava o povo quase todo na rua e de repente vem um sujeito ter comigo, vestido à civil e de metralhadora em punho, e pergunta: ‘Onde vai?’, e eu: ‘Trabalho na biblioteca, vou almoçar’, e ele: ‘Passe, passe, que isto hoje está complicado’.”
Foi, no entanto, a primeira vez que se sentiram directamente visados. “Todos os moradores ali nos tinham como referências positivas. Nunca tive qualquer problema no bairro. O meu carro ficava sempre no mesmo sítio e até podia ficar aberto”, comenta Sónia Fernandes, do Programa Escolhas, que apesar de ter saído da Sophia permaneceu no Armador até 2011.
Não foram os tiros que mataram a Sophia, mas parece que esse acontecimento foi um prenúncio de que algo mau se seguiria. Passado pouco tempo, os canos dos esgotos rebentaram e o depósito da biblioteca ficou inundado, estragando grande parte do material. Ainda esse percalço não estava ultrapassado, deu-se logo de seguida nova inundação. Ainda pediram a Teresa que reabrisse a biblioteca, mas ela recusou-se a fazê-lo enquanto não houvesse obras. A Sophia fechou de vez.
“Para mim, foi uma grande pena, embora eu estivesse muito cansada, mas fecharam numa altura em que eles já estavam minimamente civilizados”, ri-se Teresa Santos. “Já tinham uma percepção de biblioteca muito diferente da que tinham no início”, garante. “Pensei que não ia sair mais de lá, foi um choque muito grande ter fechado. Tive algumas depressões lá, em certos dias pensava: ‘Quero desaparecer’, mas tenho saudades”, diz Cláudia Moreira.
A atribuição do nome de Sophia à biblioteca foi “um sinal de como queremos que seja o nosso viver comum”, diz o site Revelar Lx. “Aquela biblioteca chamar-se Sophia ou Quim Barreiros era igual”, brinca Cláudia. “Toda a poesia que pudesse existir inicialmente… precisamos de recursos”, desabafa Maria Santos Silva.
A Sophia, biblioteca, fechou sem que Sophia, a poetisa, lá tivesse ido. Nem a escritora, que morreu em 2004, foi ao Armador, nem os filhos que gerem o espólio tinham alguma vez ouvido falar da biblioteca. Na Internet, escasseiam os registos. A memória da Sophia ficou confinada a quem a viveu.
E, apesar de tudo, o que conseguiram fazer naquele período teve algum mérito, pelo menos o suficiente para ainda ser lembrado no bairro. “Aqueles dez anos foi um trabalho em vão que se perdeu completamente”, lamenta Teresa Santos. Hoje, a Quinta do Armador tem o Lx Jovem e Marvila tem uma grande biblioteca, a mais moderna da cidade. Talvez o sonho que inspirou a Sophia continue vivo por lá.