O corpo de Jota Mombaça é um manifesto

Escreve e faz performance das suas ideias em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, “estudos kuir”, justiça anti-colonial... fica-se com a impressão de que não apenas devorou teoria com a urgência de quem quis sobreviver, mas que esta lhe atravessou o corpo. Esteve na Bienal de Berlim com uma performance, está este domingo na Foz do Porto.

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SEBASTIÁN FREIRE

Convidada a participar na Bienal de arte contemporânea de Berlim para uma leitura-performance, Jota Mombaça, 27 anos, nascida e criada no Nordeste do Brasil, nómada a residir actualmente em Lisboa, define-se a si mesma como "bicha não binária". Afável, exuberante e frágil, vestida com uma túnica que lhe serve para para confundir definições e revelar um corpo tatuado, recusando qualquer tipo de normatividade, vem ao nosso encontro uma guerreira temível que dispara com a acutilância das palavras. Fica-se com a impressão de que não apenas devorou teoria com a urgência de quem quis sobreviver, mas que esta lhe atravessou o corpo. "Pode um cu mestiço falar?" é um título de um texto seu em que se apropriava o título de um ensaio da filósofa indiana Gayatri Spivak, "Podem os subalternos falar?". A resposta, provocadora, era não. Jota Mombaça não só escreve como faz performance das suas ideias, trabalhando em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, "estudos kuir", justiça anti-colonial, redistribuição da violência, ficção visionária e tensões entre arte e política nas produções de conhecimentos do "Sul-do-Sul globalizado". Para uma nova geração de artistas, activistas, investigadores e curadores investidos no debate sobre a descolonização, que está a atravessar um apogeu nas artes, tornou-se impossível pensar a questão do racismo sem cruzar as dimensões de classe social ou de identidade de género.

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Para uma nova geração de artistas, activistas, investigadores e curadores investidos no debate sobre a descolonização, tornou-se impossível pensar a questão do racismo sem cruzar as dimensões de classe social ou de identidade de género. SEBASTIÁN FREIRE

"Não há lutas unidimensionais porque não há vidas unidimensionais", diz Jota Mombaça, citando a afro-americana Audre Lorde (1934-1992). Há diferenças decisivas entre o debate actual e o momento histórico da luta pela independência das colónias ou da segunda vaga do feminismo (que ficou conhecida no contexto português através do julgamento do livro Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa). Diferenças de origens de classe, em que os combates estiveram associados a uma classe média-alta urbana que protegia o privilégio do acesso à universidade. Diferenças de horizontes teóricos –? o marxismo era a narrativa de fundo e o "povo" era a categoria abstracta para a qual tudo se remetia – e de práticas culturais – a poesia era a arma central para escapar à censura. O corpo de Jota Mombaça é, por si só, um manifesto e torna evidente o que entretanto mudou. Encontrá-la é ter a sensação de que algo tem andado invisível no debate público, nas vozes e nos corpos autorizados a falar (ela utilizará a noção de "lugar da fala" para situar e questionar em permanência quem fala, de que posição e para quem). E digamos sem rodeios, vem aí um tremor de terra. 

A mudança situa-se desde logo no interior mesmo da linguagem utilizada. Pouco fica de pé. Se é evidente que Jota Mombaça deve muito aos estudos queer e pós-coloniais das últimas décadas, e tratando-se de autores na maior parte dos casos ainda por traduzir, será então ela que vai "entortar" os conceitos e adaptá-los à sua experiência de um país ex-colonizado. Assim, queer tornar-se-á cuir, e Jota identifica práticas populares de desobediência sexual e de identidade género que já existiam (como os terreiros de candomblé queto, em que participantes conjugam códigos femininos e masculinos) muito antes de serem teorizados pela categoria global do queer. Mas quando pensaríamos que esta lógica de digestão local poderia remeter para precedentes que passariam pelo manifesto antropofágico brasileiro (1928), Jota dispara: "A antropofagia foi uma lógica de devoração e eu pratico uma lógica de vómito. O poeta Oswald de Andrade [1890-1954] integra ainda uma forma de colonialismo interno, trata-se de uma elite branca, com acesso exclusivo à arte e com uma imagem idealizada do sujeito racializado. Há uma ficção da democracia racial, quando a negritude foi sendo aniquilada pela pobreza e miscigenação. A filósofa e psicanalista Suely Rolnik, investigadora em São Paulo, lembra que o capitalismo financeiro devora tudo e pratica uma antropofagia zombie, criando uma hiper-flexibilidade do sujeito e impedindo subjectividades – para ela não são apenas necessárias resistências macropolíticas mas também uma micropolítica do desejo, porque de outra forma se reproduz o inconsciente colonizado pelo capitalismo e volta tudo ao mesmo lugar. "Há que desenvolver uma ética própria, uma política do cuidado, recusando o banquete que nos é imposto. Comer aquilo que nos potencializa e vomitar o projecto genocida cristão do corpo colonizado". 

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Dia 15, às 19h30, na Praia Homem do Leme (Foz do Porto), Jota Mombaça fala sobre “Dor, Dívida, Dilema: O que significa descolonizar?”, no evento Nau! do Teatro Experimental do Porto F. Anthea Schaap

Jota Mombaça, que este domingo, às 19h30, na Praia do Homem do Leme (Foz do Porto) fala sobre Dor, Dívida, Dilema: O que significa descolonizar, a convite do Teatro Experimental do Porto, foi também convidada pela Bienal de Berlim a escrever um texto fundamental no catálogo (Por uma greve ontológica) que tem a impetuosidade crítica habitual da autora, próxima de um manifesto, mas introduz uma melancolia inusitada. Partindo da impressão de que o seu trabalho é uma fuga para se "salvar de algo do qual não posso ser salva" e fazendo por escapar às estatísticas dos corpos negros queer confrontados com a violência ou a morte (numa das suas tatuagens lê-se "A gente combinamos de não morrer", citando uma das autoras brasileiras que mais admira, Conceição Evaristo, nascida numa favela de Belo Horizonte). O texto resume uma lógica de exploração das contradições e conflitos que distingue a sua escrita – não se limitando a criticar posições dominantes mas também posturas supostamente críticas – para interrogar a forma como a arte contemporânea (e as bienais) obriga os corpos e as vidas negras queer a transformarem-se no tema do trabalho, sendo que estes corpos já são determinados por estruturas de poder lhes extraem subjectividade. E recusa-se a estabelecer uma narrativa heróica sobre as lutas destes corpos e vidas quebrados para evitar que isso se torne a condição para ter acesso ao mundo da arte. "O que não quer dizer que eu entre num fetichismo do-it-yourself, o meu trabalho está atravessado por instituições".

A melancolia parece surgir de uma constatação lúcida, já evocada por José Esteban Muñoz (1967-2013), investigador de performance e teórico da desidentificação (enquanto forma de oposição à identidade), quando sublinhava estar consciente de que o devir queer ainda é uma utopia. "O futuro é um privilégio", diz Jota, e talvez por isso cite no seu texto a escritora afro-americana de ficção cientifica Octavia E. Butler – outra das autoras reverenciadas por esta nova geração – procurando extrair o futuro desta lógica de utopia, partindo da negritude. Numa conferência no Rio de Janeiro, Jota Mombaça criticou o princípio estandardizado de fluidez de género, acrescentando que no contexto de precariedade generalizada que combate, o seu género "não flui, como é possível?". Interrogou-se ao anunciar a sua transição de identidade de género: "Embora eu saiba identificar a estrutura da qual me afasto, fugindo ao projecto arbitrário da masculinidade" (a obrigação de uma concordância entre identidade e sexo de nascença), "prossigo sem coordenadas para saber onde isso me pode levar e, portanto, tropeço (…). Pensar na transição e na descolonização a partir de uma perspectiva abolicionista requer pensar e deslocar provisoriamente a questão sobre o que vou passar a ser, abrindo espaço para outras questões: como desfazer o que fazem de mim?".

No contexto lisboeta, Jota Mombaça tem escrito e participado em plataformas que estão a abrir espaços para o debate da descolonização, marcado recentemente pela polémica gerada em torno da designação do museu das "descobertas" ou da estátua do Padre António Vieira. "A reciclagem 'pós-colonial' dessa personagem, amparada pelo imaginário amplamente difundido da colonização portuguesa como branda e, particularmente, do referido padre como tendo sido uma figura sensível à humanidade das gentes que viviam nas terras do que hoje chamamos Brasil, atesta de maneira contundente a hegemonia do lugar de fala branco-colonial como infraestrutura dos regimes de verdade". Encontrou vozes aliadas em projectos lisboetas como Buala ou a rádio Afro-Lis, ou na colectânea de poetas e autores negros Djidiu – A Herança do Ouvido, incluindo nesta rede de afinidades o jovem poeta queer Daniel Lourenço – interessado por formas de neuro-dissidência em saúde mental e tecendo críticas ao capacitismo – ou a investigação do Nicholas Mirzoeff na Universidade Nova sobre culturas visuais de protesto. E atribui um valor histórico às duas conferências em Lisboa de Grada Kilomba, artista e investigadora lisboeta a residir em Berlim (e que está também a participar na Bienal), em que esta considerou "uma profunda negação" a relação da subjectividade portuguesa com a "ferida colonial". Jota é extremamente crítica em relação à invisibilidade para a qual estão remetidas as vozes negras neste debate. "Quando uma pessoa branca diz 'usar seu privilégio' para 'dar voz' a uma pessoa negra, ela di-lo na condição de que essa 'voz dada' possa ser posteriormente metabolizada como valor, sem com isso desmantelar a lógica de valorização do regime branco de distribuição das vozes". E assume que a dificuldade para quem pratica a dissidência está em preservar as sementes de pessoas ainda por existir, que terão de se inventar a si mesmas a partir daquelas que foram historicamente negadas.