O abismo da dor no teatro de dúvidas de Pascal Rambert
Uma estrela dos palcos procede a um ritual de despedida do mundo. Em Actrice, Pascal Rambert vai mais fundo neste jogo de, através das palavras, habitar outro corpo. O Festival de Almada apresenta no D. Maria II a peça que rendeu a Marina Hands o Molière para Melhor Actriz.
Pascal Rambert foi sempre o típico rapaz sem o menor jeito para jogar futebol. Não compreendia as regras, achava o jogo muito violento, era demasiado lento, desastrado para lá do admissível, um caso óbvio de prejuízo para qualquer equipa que tivesse o azar de o escolher. Sem surpresa, o destino recorrente de Rambert era ser despachado para o banco. “Só que isso era muito bom”, conta, “porque ficava sentado com as raparigas e passava os jogos de futebol a ouvi-las falar.” O dramaturgo francês acredita que vem dessa relação acidentada com o desporto o fascínio de se relacionar com um mundo a que não pertencia e para o qual tentava transportar-se. Pode assim dizer-se que o seu trabalho de escrita obedece a esse impulso de tentar saltar para um universo estranho que tenta recriar ou reordenar.
É uma das razões mais convincentes que encontra para o seu interesse em escrever para actrizes – “por ser um território do absoluto outro para mim”, resume, ao colocar-se na situação de durante alguns meses se imaginar no corpo e na cabeça de outra pessoa. Mas há nesta tendência natural de contrariar aquilo que lhe é naturalmente próximo também uma decisão consciente de “statement político”, ditado pela consciência de saber que os grandes papéis nos palcos de teatro não pendem tantas vezes para o lado das mulheres quanto para o dos homens.
Em Actrice, em cena domingo e segunda no D. Maria II, Lisboa, no âmbito do Festival de Almada, Pascal Rambert leva bastante mais longe este desejo de adentrar outros corpos e outras consciências. O corpo de Eugenia (Marina Hands), no palco, está rodeado de flores; a sua consciência está rodeada de morte. Desta vez, o dramaturgo foi mais fundo no seu lugar de desconhecimento, escrevendo para uma personagem que é uma actriz em fim de vida, à qual foi diagnosticado um tumor cerebral e que se despede do mundo. “Quis ir para este território muito assustador”, confessa, lugar que invadiu a sua escrita devido à situação que decorria em paralelo perto de si – à medida que inventava um lugar ficcional para aquela actriz, um amigo próximo e bem real via-se a lutar pela vida, com um quadro semelhante.
As flores que alastram e dominam o palco foram, no entanto, plantadas por uma outra experiência menos dramática. Quando Pascal Rambert se instalou em Moscovo para iniciar o processo de criação de uma peça para o Teatro de Arte da cidade, ficou impressionado pelo “entusiasmo febril” que o público ali demonstra pelos actores. As flores eram, antes de mais, o símbolo desse amor que via repetir em cada noite de estreia e que se tornava uma medida válida para avaliar o carinho por actores e actrizes. “Foi muito impressionante para mim”, confessa, “porque nos países do sul da Europa não estamos habituados um tal fervor. Foi também por isso que comecei a pensar na enorme perda que seria a morte de algum daqueles actores.”
O facto de ter escrito Actrice em Moscovo, reconhece Pascal Rambert, levou a que a sua linguagem teatral se tornasse mais poética mas também mais dramática. E isto porque, apesar de o seu estilo ser porventura reconhecível na elegância e na ocasional violência seca das frases, o francês gosta de trabalhar a porosidade da sua escrita, reagindo “à forma de representar na Rússia, muito diferente da italiana, mexicana, chinesa ou japonesa”. Daí que a sua linguagem se tenha adaptado aos actores russos para quem escreveu a peça inicialmente. “A beleza de trabalhar sobre a língua”, diz ao Ípsilon, “é que pode ser sempre refundada e remexida. A língua fura por muitos lados e gosto muito de que possa não estabilizar.”
Um teatro de dúvidas
Nada seria mais natural do que assumir que esta permeabilidade de Pascal Rambert perante os actores tivesse conduzido a uma reescrita de Actrice aquando da produção francesa que chega ao Festival de Almada. Escolhendo a luminosa Marina Hands para se transfigurar na nesta estrela retirada dos palcos e a caminho da morte, não espantaria que a sua linguagem se adaptasse ao perfil da actriz. Acontece que, desde o primeiro dia de ensaios, recorda Pascal, não teve praticamente o que dizer a Marina. “Já trabalhei com muitas grandes actrizes por todo o planeta, mas ela é mesmo muito especial”, argumenta. “Estava tudo certo desde o início. Não interpretou nada mal, não falhou em nada, tomou totalmente conta das palavras e cada frase que lhe saía era extraordinária.” O impacto foi de uma tal intensidade que o dramaturgo recorda que, mesmo em ensaios, cada dia em que Marina Hands era uma Eugenia prostrada na cama, pedindo ao pai que a protegesse e descrevendo a sua entrada numa paisagem de neve em que um urso branco guarda o portão da morte deixava toda a equipa em lágrimas.
Não terá sido um grande choque, por isso, que Marina Hands tenha vencido o prestigiado Prémio Molière para Melhor Actriz, graças a estas duas intensas horas em que um abismo de dor, sofrimento e desespero se abre diante de si e parece puxar-nos a todos para o seu interior – um precipício comum para o qual nos vemos empurrados, seguindo em queda livre, até que no último momento Eugenia é sugada e nós cuspidos, maltratados, devolvidos ao lugar do início.
Pascal Rambert nem estava muito convencido em chamar Hands para Actrice. Fiel aos actores com quem habitualmente trabalha, há já alguns anos que aprofunda uma relação de trabalho com a também magnética Audrey Bonnet – Ksenia em Actrice, regressada a casa para ver a irmã Eugenia murchar como as flores à sua volta – , mas foi a própria Audrey a sugerir-lhe repetidas vezes que chamasse Marina para o seu núcleo próximo. Desconfiando, Rambert cedeu e assistiu a Ivanov, de Tchékhov, encenado por Luc Bondy para o Odéon. E ficou boquiaberto. Sempre disponível para se (re)apaixonar pelos seus actores e pelas suas actrizes, decidiu escrever uma peça para Marina e Audrey (Soeurs, com estreia marcada para Outubro deste ano) no dia a seguir à estreia da versão francesa de Actrice no Théâtre des Bouffes du Nord, deslumbrando com o encontro de energia das duas numa das cenas capitais da peça. “O teatro é uma arte dura e por isso precisamos de ter pessoas fortes com quem possamos ir longe”, justifica.
A morte em palco de uma actriz serve também a imagem do próprio teatro – que nunca deixa de estar no centro da escrita de Pascal Rambert. Se no combate de boxe conjugal que era O Final do Amor – encenado por Victor de Oliveira, na Culturgest, em 2017, e também apresentado por Ivica Buljan neste Festival de Almada – se podia ler a relação tumultuosa entre actriz e encenador, Actrice é também percorrida por esse fantasma de vida e morte sistemáticas que um(a) intérprete leva para palco de cada vez que entra e sai de uma personagem. Como uma morte que se dá em palco todas as noites, uma despedida repetida de um ser que ganha corpo, densidade e sentimentos momentâneos para ali ser largado e, talvez, reanimado na noite seguinte.
Pascal Rambert não nega essa construção por camadas, admite ser assaltado por uma “zona misteriosa” entre actores e personagens, e reconhece que colocar o teatro no centro do palco é sempre “uma oportunidade para falar sobre tudo – paixão, ciúme, morte, perda”, respeitando sempre a ideia de que o palco serve para diferentes personagens “trocarem ideias e opiniões” que não são necessariamente as suas e questionar como “podemos levar o teatro connosco para as escolhas que fazemos nas nossas vidas”. Sem esquecer que, “ao contrário dos talk-shows em que só ouvimos pessoas arrogantes a falarem sobre qualquer assunto, mostrando que sabem”, Rambert quer permanecer na dúvida. No seu teatro, as certezas ficam à porta.