A Nicarágua está em guerra contra Ortega – um banho de sangue sem fim à vista
Contestação ao Presidente arrasta-se há três meses sob a forma protestos violentos, reprimidos pelo orteguismo também com violência. Número de mortos ultrapassa os 300. O país mergulhado num abismo que parece não ter fundo.
Estradas bloqueadas, barricadas nas ruas, greves nacionais, confrontos entre gangues. E sangue, demasiado sangue. É a realidade da Nicarágua há praticamente três meses e não parece haver forma de lhe por cobro. A repressão brutal das forças governamentais a um protesto contra a proposta de Daniel Ortega para reformar a Segurança Social, em Abril, deu origem a um movimento alargado de contestação popular, que se recusa a abandonar a ruas enquanto o Presidente se mantiver em funções.
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Estradas bloqueadas, barricadas nas ruas, greves nacionais, confrontos entre gangues. E sangue, demasiado sangue. É a realidade da Nicarágua há praticamente três meses e não parece haver forma de lhe por cobro. A repressão brutal das forças governamentais a um protesto contra a proposta de Daniel Ortega para reformar a Segurança Social, em Abril, deu origem a um movimento alargado de contestação popular, que se recusa a abandonar a ruas enquanto o Presidente se mantiver em funções.
Da batalha diária entre apoiantes e opositores do orteguismo nas ruas da Nicarágua, contam-se mais de 300 mortos e dois mil feridos. Um banho de sangue sem fim à vista, que mergulhou o país num abismo que parece não ter fundo.
A quem o acusa de autorizar e pôr em prática detenções arbitrárias, repressão, tortura, violações de direitos humanos, corrupção e patrocínio de grupos paramilitares – conhecidos por “turbas” ou “grupos de choque” –, Ortega abana a cabeça, afiança que o Governo é “indestrutível” e garante que tudo não passa de uma gigantesca conspiração da oposição para o derrubar a si e à vice-presidente, Rosario Murillo, que é também a sua mulher.
“Eles conspiram para denunciar ataques inexistentes, depois atacam e fazem vítimas para poderem culpabilizar as instituições responsáveis pela ordem pública”, dispara o Governo.
Certo é que a decisão do Presidente de retirar de cima da mesa o documento para a reforma social em pouco ou nada contribuiu para travar a onda de indignação contra a sua governação – redobrou-lhe mesmo a velocidade. E com ela os confrontos, os homicídios e os sequestros, desde as regiões rurais até à capital, Manágua. Um caos expandido de tal forma pelo país que dificulta a contagem dos mortos, dos feridos e dos desaparecidos.
“O país está submetido a um estado total de terror, com níveis de violência extremos e ilimitados”, denuncia ao El País Gonzalo Carrión, jurista do Centro Nicaraguense de Direitos Humanos, mas, garante, a resposta das milícias afectas à Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN, no poder) está a ter “o efeito contrário ao terror que se querem semear”. “Multiplica o repúdio da população contra o Governo e cava ainda mais fundo o buraco onde se afundou o regime”, assegura Carrión.
Entre os que pedem a queda da dupla Ortega-Murillo destacam-se os estudantes, os pensionistas e os sindicalistas. Mas também as elites empresariais e a Igreja Católica, que depois de se reconciliarem com Ortega nesta sua segunda passagem pelo poder – foi eleito em 2006, tendo presidido à Nicarágua entre 1985 e 1990 – afastam-se agora do caminho trilhado pelo herói da Revolução Sandinista.
A Igreja ofereceu-se para mediar o diálogo entre o Governo e oposição, mas os seus membros também já foram alvos da fúria e da violência das “turbas” orteguistas. “Fui ferido, golpeado no estômago, roubaram-se as insígnias episcopais e fui agredido verbalmente por uma turba inflamada que queria entrar na Basílica de San Sebastián”, contou o bispo Silvio Báez, que integrava uma delegação da Conferência Episcopal da Nicarágua que se deslocou recentemente a Diramba para ajudar a pacificar a cidade.
Do sandinismo ao orteguismo
Na actual Nicarágua de Daniel Ortega sobra (muito) pouco do ideário socialista e progressista que moveu a revolução contra a ditadura de Anastasio Somoza, em 1979, e que até 1990 fez do país um bastião da resistência marxista latino-americana aos Estados Unidos.
Ocorrida já depois do Brasil, da Argentina ou do Chile terem sido engolidos por regimes autoritários e numa altura em que a asfixia do embargo norte-americano e dos “contras” – milícias contra-revolucionárias financiadas por Washington que combatiam movimentos de esquerda na América Latina – era palpável, a Revolução Sandinista foi aclamada com as mesmas honras que a Revolução Cubana (1959). E foi, nos seus primeiros anos, um balão de oxigénio para a esquerda libertária da época, que via em Ortega um revolucionário da mesma estirpe de Ernesto ‘Che’ Guevara ou Fidel Castro.
Num artigo de opinião publicado no site brasileiro Carta Maior, o professor e director do Centro e Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos, destaca não só a “contracorrente auspiciosa” trazida pela Revolução Sandinista, mas também as “transformações concretas que protagonizou”. Como a “participação popular sem precedentes, a reforma agrária, a campanha de alfabetização que mereceu prémio da UNESCO, a revolução cultural ou a criação de serviço público de saúde”.
Este entusiasmo socialista não se converteu, porém, em progresso económico para a Nicarágua, realidade que castigou a FSLN nas urnas em 1990 e que pôs um ponto e vírgula na revolução.
Nas três eleições presidenciais seguintes Ortega coleccionou fracassos eleitorais, mas a sua persistência seria recompensada em 2006, com a reconquista da presidência e do poder.
A segunda vida do guerrilheiro transformado em político abriu caminho ao abandono do sandinismo em detrimento do orteguismo. Daniel Ortega aboliu a limitação de mandatos presidenciais, suprimiu a oposição política e assumiu, com mão de ferro, o controlo das autoridades eleitorais, da justiça e de grande parte da comunicação social da Nicarágua. Movimentações que o ajudaram a manter-se no poder e que foram acompanhadas de reconciliações estratégicas e pragmáticas com a Igreja e com os grandes grupos empresariais – dois dos principais inimigos da Revolução Sandinista.
Ao clero ofereceu, entre outras concessões, a proibição total do aborto no país, em troca de paz social e neutralidade. E para agradar às elites empresariais, pôs em prática um modelo económico de cariz neoliberal, assente na desregulação da economia, na promoção de iniciativas público-privadas e numa postura de favoritismo aos grandes grupos económicos – que contribuiu para uma situação de acumulação de riqueza nas mãos de um número reduzido, mas poderoso.
Com a economia a crescer a uma média de 4% entre 2007 e 2017, segundo a revista Economist, e as principais empresas da Nicarágua satisfeitas, Ortega recebeu delas luz verde para estender o seu braço dominante pelas várias instituições do Estado e implementar a sua guerra suja.
Fim do modelo
O crescimento económico não teve, ainda assim, repercussões no dia-a-dia do cidadão comum, particularmente nos meios rurais. De acordo com os dados recolhidos pelo Observer, cerca de 30% dos nicaraguenses – quase dois milhões de pessoas – vive com menos de dois dólares por dia. Números que, segundo este jornal, fazem do país o mais pobre da América Central e o segundo mais pobre do hemisfério ocidental, apenas suplantado pelo Haiti.
Com a degradação social galopante – também agravada pela redução das ajudas oriundas da Venezuela, de Nicolás Maduro –, multiplicaram-se os protestos e com os protestos aumentou a repressão do Estado para os abafar. Desta vez, porém, os nicaraguenses não arredam pé da rua, cansados da violência, da pobreza e da falta de oportunidades.
“Não há que ter medo. O que aconteceu em Abril foi apenas um motivo para iniciar este movimento, que tem uma mensagem clara: este homem vai ter de se ir embora”, afirma ao El País, uma manifestante de Manágua, de 76 anos, que aponta as manifestações, as greves e até o fim do pagamento de impostos como remédios para a queda de Ortega.
Primeiro foram os jovens e as falanges mais pobres da população a virar as costas a Ortega, depois a Igreja e agora até a elite empresarial. A agitação popular atingiu duramente a economia – 4% do PIB do país entre Abril e Junho, escreve a Economist – e levou os grandes grupos a pedir a antecipação das eleições para 2019. “O modelo que nos trouxe até aqui está esgotado”, assume sem rodeios o milionário Carlos Pellas.
A perda de confiança em Ortega alastrou-se ainda a sandinistas e ex-sandinistas, desapontados com o rumo seguido pelo dirigente de 72 anos. Ao El País, a antiga guerrilheira e historiadora Dora María Téllez junta a sua voz aos que olham para a intransigência do Presidente como a principal razão para o banho de sangue na Nicarágua e não esconde o seu pessimismo: “Ortega e a sua família sabem que têm um prazo de validade. O problema é que o querem prolongar o mais possível e, como esse prolongamento, cobrar aos nicaraguenses o mais alto preço – o preço do sangue”.