Contrafacção: porquê não comprar aquela camisola falsa?
Tudo o que tem procura no mercado pode e acabará por ser contrafeito. E chegará aos consumidores em qualquer parte do mundo.
Ainda não há muitos anos, alguém entrevistado num canal português de televisão afirmava que apenas seria prejudicial a contrafacção de produtos perigosos (como os medicamentos). A “outra”, de produtos como o vestuário, seria “inofensiva” em termos de comunidade global e afectaria somente os próprios titulares dos direitos. Era um advogado, convidado a comentar, em estúdio, uma reportagem sobre uma conferência ocorrida no Porto, relacionada com a Propriedade Intelectual e a contrafacção.
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Ainda não há muitos anos, alguém entrevistado num canal português de televisão afirmava que apenas seria prejudicial a contrafacção de produtos perigosos (como os medicamentos). A “outra”, de produtos como o vestuário, seria “inofensiva” em termos de comunidade global e afectaria somente os próprios titulares dos direitos. Era um advogado, convidado a comentar, em estúdio, uma reportagem sobre uma conferência ocorrida no Porto, relacionada com a Propriedade Intelectual e a contrafacção.
É claro que ninguém contesta a gravidade da contrafacção, quando se fala – por exemplo – em medicamentos. Trata-se de “fármacos” com pouca ou nenhuma substância activa (ou, pior ainda, com substâncias tóxicas) que, quando não matam, na melhor das hipóteses não têm qualquer efeito terapêutico. Estima-se que, em África, não menos do que 70% dos medicamentos que circulam no mercado oficial são contrafeitos. Outras regiões do globo (como a Europa), onde os mercados são fortemente regulamentados e sujeitos a medidas de segurança, estão a salvo desse fenómeno. A não ser, evidentemente, quanto aos medicamentos adquiridos directamente online pelos consumidores finais, de que apenas uma pequena minoria é interceptada pelas Encomendas Postais das Alfândegas.
Outros casos de contrafacção de produtos perigosos, de alcance global, podem envolver alimentos ou cosméticos (estes últimos, nas situações mais extremas, com ingredientes que agridem o organismo). Para além de peças de automóveis e de aeronáutica que não cumprem os requisitos de segurança. Até componentes de equipamentos militares altamente sofisticados…
Tudo o que tem procura no mercado pode e acabará por ser contrafeito. E chegará aos consumidores em qualquer parte do mundo – que compram esses produtos, ou não, de forma consciente.
A “outra” contrafacção, de que mais frequentemente falamos (vestuário, artigos de luxo…), não porá normalmente em risco a saúde dos consumidores. Nessa perspectiva, será meramente opção sua – comprar ou não esses produtos contrafeitos –, admitindo que eles realmente não se importam de comprar artigos de má qualidade (o tal “gato por lebre”).
Mas a perigosidade dos produtos (imediata, para o consumidor final) é apenas uma das vertentes da questão. São conhecidas e repetidamente divulgadas as consequências negativas da contrafacção (em geral) em termos económicos e sociais (o desemprego que gera). Até no plano fiscal se torna desigual a “concorrência” entre as empresas e as redes de contrafacção.
Como sempre acontece, haverá produção e oferta de contrafacção enquanto houver procura por parte dos consumidores. O combate à contrafacção passará pois, em larga medida, pela sensibilização de quem a procura…
Não é tarefa fácil, essa sensibilização, baseada essencialmente em valores de economia, de protecção das empresas (quando não são as nossas), de interesses algo difusos e altruístas – porque (pelo menos aparentemente) não prejudicam de forma directa esses consumidores finais que optem conscientemente por comprar produtos contrafeitos. Como as demais questões cívicas, implicará um avanço geracional. Há uns 40 ou 50 anos (a comparação poderá não ser muito feliz…) era perfeitamente normal e socialmente aceitável andar de mota sem capacete, conduzir sem cinto de segurança (os miúdos iam alegremente à frente, ao colo dos pais, ou “soltos” atrás, na brincadeira) ou com uma taxa de álcool “um pouco acima”. Ainda hoje se luta, por exemplo, para incutir hábitos de reciclagem ou de limpeza nas ruas. Veremos o que o futuro nos trará, a esse nível, no que respeita à contrafacção…
Entretanto, valerá a pena ir pensando que este não é necessariamente um fenómeno compartimentado, por sectores ou níveis de perigosidade. As redes criminosas (para lavagem de dinheiro, financiamento de terrorismo e outros fins) que beneficiam da distribuição e venda de vestuário contrafeito, são afinal as mesmas envolvidas e que lucram com os medicamentos contrafeitos.
Assim, ao entrarmos no circuito, comprando a “inofensiva” camisola falsa, podemos pelo menos pensar que estaremos a contribuir para a profusão dos tais produtos perigosos, que (consensualmente) ninguém quer. Nem para os outros nem para si.