O tempo e o modo de António Costa

António Costa, nestes quase mil dias de governo, já consagrou um outro tempo – o da consolidação da democracia pluralista.

1. Quando, no dia de hoje, o parlamento se dispuser a fazer o debate sobre o Estado da Nação, António Costa estará perto de chegar aos mil dias de governo. Pode parecer pouco, mas essa marca, desde 1976 até hoje e em todos os governos que nasceram depois da aprovação da Constituição da República, só foi superada por Cavaco Silva, António Guterres, José Sócrates e Pedro Passos Coelho.

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1. Quando, no dia de hoje, o parlamento se dispuser a fazer o debate sobre o Estado da Nação, António Costa estará perto de chegar aos mil dias de governo. Pode parecer pouco, mas essa marca, desde 1976 até hoje e em todos os governos que nasceram depois da aprovação da Constituição da República, só foi superada por Cavaco Silva, António Guterres, José Sócrates e Pedro Passos Coelho.

Aníbal Cavaco Silva e José Sócrates obtiveram maiorias absolutas; Passos Coelho retornou a uma forma de governo que, no inicio da década de 1980 não havia chegado a bom porto, com o CDS; Guterres governou quase em paz (não fossem dois referendos perdidos) porque tinha mais deputados que o PSD e o CDS juntos num parlamento de quatro partidos e porque esse equilíbrio, associado ao comportamento económico e à eleição de Jorge Sampaio, garantiram uma legislatura e metade de outra, esta segunda já em estado desfalecido.

Mário Soares também supera Costa em dias somados como chefe do Governo, porque a ele chegou em dois tempos, mesmo que em situações semelhantes (duas intervenções externas do FMI, uma da responsabilidade do PREC e outra da responsabilidade da AD).

Soares e Costa contrastam com os restantes na naturalidade, lisboetas de quatro costados, ambos, não seguem a origem de outros territórios interiores do país de que os restantes acima indicados sobrevieram. E terá a origem alguma coisa a ver com a fatalidade de não chegar ao fim das legislaturas? Haveria de existir muito mais do que mera intuição, do que um atrevimento na análise. Acontece que os dois países que existem dentro do país, quando reunidos, consagram maiorias absolutas (ou quase) e quando se separam deixam, por resultado da apreciação histórica, os partidos longe de uma consagração temporal relevante e completa. Mário Soares, Pinto Balsemão, Durão Barroso ou Santana Lopes tinham um país diferente em si, diferente do todo que soma as partes, e só Soares se apoderou do Portugal total quando assumiu a grandeza que foi o seu mandato presidencial inolvidável.

Mas há ainda um outro dado que pode ser relevante. A média de idades, de todos os que chegaram a primeiro-ministro depois de 1976, é de 47 anos. Nobre da Costa, de quem pouco nos lembramos, tinha 53 anos, Soares tinha 52 anos e todos os restantes menos. E se no início os mais velhos se afirmavam (convirá não esquecer que o poder era, essencialmente, sabedoria e influência), a partir de Mota Pinto, aos 42 anos, nenhum outro líder de governo chegou a São Bento depois dos 48 anos. Nenhum não, só António Costa, aos 54 anos, após uma longa carreira política (três vezes ministro e presidente do mais relevante município do país).

E o que nos querem dizer a origem e a idade nesta curta análise? Nada que não seja a exteriorização da personalidade ímpar que recheia o político e o líder António Costa. Pouco e muito se tivermos em conta que só alguém com uma vida tão rica e tão abrangente poderia ter consagrado e liderado uma solução verdadeiramente impossível à partida. E foi essa vida rica que permitiu continuar a assinalar como relevante o ano 5 em cada uma das últimas quatro décadas: Soares regressou ao governo em abril de 1985; Guterres foi primeiro-ministro em outubro 1995; Sócrates em março de 2005; e Costa em novembro de 2015.

A historiografia está cheia de atrevimentos. E fazê-la em cima do acontecimento é um erro a que não deveremos ceder. Acontece que a análise política é muito mais que a consagração da História, é a relevância do tempo no tempo.

Mário Soares ficou na nossa memória como o pai duplo do país que atualmente somos. Garantiu uma democracia liberal, integrou o Império de António Vieira, Agostinho da Silva e Eduardo Lourenço, no campo onde sempre deveria ter permanecido, apesar das aventuras marítimas – a Europa. António Costa, nestes quase mil dias de governo, ainda longe de podermos esmiuçar o seu exemplo e legado, já consagrou um outro tempo – o da consolidação da democracia pluralista em que todos os partidos parlamentares se podem e devem sentir obrigados a soluções de governo sustentadas.

Só os néscios políticos se atrevem a considerar pouco este passo de gigante na nossa democracia, só os recalcitrados amantes do direito divino de governar, mesmo que desconhecendo as regras das maiorias parlamentares, lhe podem recusar este significativo passo de integração de Abril. 

2. Aqui chegados o que pode estar a acontecer? Muitas personalidades olham para a última sessão legislativa da presente legislatura com apreensão, com um medo reforçado de não cumprimento do tempo que se impôs. Não comungamos de qualquer desses olhares, porque não vemos em qualquer dos partidos, do lado esquerdo parlamentar, qualquer vontade de “não sair bem disto”.

Claro está que cada um segue o seu caminho, porque, apesar de ter havido uma maioria que aprovou três orçamentos, as forças políticas continuam a garantir respostas programáticas muito díspares, inexplicáveis leituras ideológicas que, para o Partido Socialista, ficaram no baú da História há quatro décadas. 

Neste momento, em tempo em que o principal partido da oposição se vira para dentro e se extingue enquanto liderança de uma alternativa, o Orçamento para 2019 não parece correr riscos pertinentes, mesmo que todos tenhamos de estar à altura de uma moderação nos salários, de um estacionar na descida do desemprego e no aumento do emprego e, até, de uma menor esperança no crescimento do produto.

Portugal tem estrangulamentos graves. Precisava de se virar para os mais dinâmicos promotores de investimento, precisava de abrir as empresas à administração moderna, precisava de ter uma outra leitura da presença do capital e do trabalho nas companhias nacionais, precisava de deixar a opção castradora do ensino profissional que ainda temos. Portugal precisava de ser mais competitivo no universo tributário quando olhamos para as diversas regiões de Espanha (com duplas ajudas, nacional e regionalmente garantidas), precisava de ser ainda mais atrevido e melhor gestor nas políticas da água, das energias e da economia circular, precisava de refundar o ensino superior e de afirmar um quarto tempo na investigação e na inovação. Precisava de choques de “boa despesa” nos orçamentos da Educação e da Saúde e precisava de voltar a ponderar, com tempo e critério, as reformas e as pensões, garantindo a renovação da força de trabalho e prevenindo o inverno demográfico que se aproxima. Até precisava de olhar à qualidade dos apoios europeus em substituição de uma dotação simbólica, em quantidade, garantida pelo passado. Mas estas tarefas serão o que os portugueses quiserem que sejam, dependentes que estão do resultado eleitoral de 2019.

Os mais afoitos consumidores de sondagens assumem a ligeira descida das cotações do PS em todas as últimas pesquisas. Um alarme! Acontece que a governação, como demonstra Macron na sua França imperial, não se faz ao contar do momento. Claro que um governo (e o partido que o suporta) não pode estar sempre em alta, quase chegando ao limiar de uma maioria absoluta. Claro que é preciso recuar para ganhar folego, balanço, para avaliar quem joga no tempo final.

Uma das questões que mais preocupam os quadros socialistas é o cansaço de algumas das pastas governativas. Quem passou pelo Governo sabe bem avaliar o que se passa perante as urgências e perante a realidade inaudita em que a gestão da coisa pública vive neste tempo de velocidade incomum. Mas também sabe que as mudanças de personalidades, quando não muito ponderadas e anteriormente validadas politicamente, podem provocar mais dano que a rotina já instalada, que a insuficiência já reconhecida.

Não votamos em remodelações para novos golpes de asa. Porque a melancia não nos permite ver o que dentro dela vem, porque o fim de legislatura não suporta erros de aprendizagem ou escrutínios complementares e excessivos da vida e da obra dos novos protagonistas que fossem nomeados.

Temos para nós que António Costa, livre como está (mesmo que por vezes o PS, sempre o PS desprendido e até atrevido, pareça não deixar) saberá encontrar o caminho para as eleições de outubro de 2019. Que o PS as ganhará parece não ser, por agora, dúvida. Com a dimensão que gostaria? Isso não importa, hoje! Até porque por esse mundo fora não governa quem ganha, governa quem garante os votos maioritários dos parlamentos em formatações positivas ou negativas. Foi assim que se consagrou a realidade esdruxula destes três anos, que não tinha (ainda não tem) a nossa total simpatia. Mas foi assim que se descobriu o compromisso entre a normalidade da vida dos portugueses (sem o fardo às costas de uma crise permanente no discurso politico), um pouco mais de rendimento disponível (como todos os indicadores comprovam) e um caminho para as contas públicas equilibradas (com reconhecimento de todos os que, por três vezes, nos colocaram o açaime).

Há muito que não vivíamos um tempo político tão interessante, há muito que o PS não nos dava matéria para nos confrontarmos. Há quem diga que António Costa é um pragmático. Também é, sim! Mas o que ele nos provocou foi um novo tempo de debate, vivo, fecundo e saudável. E essa permissão é também fazer democracia e liberdade, é também garantir futuro para o PS e para Portugal.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico