O Nos Alive foi casino com os Arctic Monkeys e Bryan Ferry
O ambiente de casino trazido pelos Arctic Monkeys dividiu o público no primeiro dia do lotado festival. Quem beneficiou foram os Nine Inch Nails ou os Wolf Alice.
Os néones estão por todo o lado. O nome das marcas cintila pelo recinto. O chão verde alcatifado até parece uma passadeira vermelha. Ainda não existem máquinas de jogo, mas as apostas sobre quem será a banda mais festejada da noite são uma constante. Com alguma imaginação, os sintomas imagéticos estavam lá. Faltava a música para dar sentido à coisa.
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Os néones estão por todo o lado. O nome das marcas cintila pelo recinto. O chão verde alcatifado até parece uma passadeira vermelha. Ainda não existem máquinas de jogo, mas as apostas sobre quem será a banda mais festejada da noite são uma constante. Com alguma imaginação, os sintomas imagéticos estavam lá. Faltava a música para dar sentido à coisa.
E ela fez-se ouvir na primeira noite do Nos Alive. Por algumas horas, o festival pareceu Las Vegas com Bryan Ferry e Arctic Monkeys. É fácil imaginar o ex-Roxy Music e Alex Turner a entrarem num casino, ambos vestidos de fato elegante, óculos de sol anos 70, trejeitos galanteadores. A diferença entre os dois é que Bryan Ferry já actuou mesmo em casinos. Os Monkeys, por enquanto, dão-se ao luxo de ser irónicos com o assunto.
Talvez por isso a divisão se tenha instalado à volta do concerto da banda britânica. No final, havia quem se regozijasse porque revisitaram o passado e apresentaram algumas canções do novo Tranquility Base Hotel & Casino (2018). Estamos com este primeiro grupo. Mas havia também quem se sentisse insatisfeito, porque os ambientes deste último disco parecem ter contaminado tudo o que se viu e ouviu. A encruzilhada estava anunciada.
E ao contrário do que tanto se disse não foi com este último registo. Já vinha de trás. Os dois primeiros álbuns do grupo são do melhor que o rock ouviu nos anos 2000 – som contundente mas de envolvimento físico, secção rítmica dinâmica, solos de guitarra vigorosos mas enxutos, voz e letras que nos devolviam o quotidiano juvenil com precisão documental.
Depois vieram dois álbuns indiciadores de mudanças, em especial Humbug (2009), com a influência dos Queens Of The Stone Age a pairar pelo todo. Mais tarde libertaram-se parcialmente dessa sombra em AM (2013), em que já era perceptível a transformação operada no disco deste ano, que tanto dividiu opiniões. Nesse registo (como também no concerto de 2014 no mesmo Nos Alive) a vontade de mudança já estava lá. Havia ainda guitarras estridentes e um som robusto, mas as evocações de um rock mais sumptuoso e de uma atitude mais teatralizada eram nítidas.
Dir-se-ia que agora tudo isso foi assumido. E o concerto mostrou-o. O rock nervoso, de melodias directas, convive agora abertamente com canções rendilhadas de imaginário exoticamente nostálgico-futurista. Há menos efervescência do início ao fim. Mas existe mais sentido de espectáculo, centrado em Alex Turner, que adopta um papel distanciado e algo irónico. Ou seja, há lugar para as canções que toda a gente conhece como I bet you look good on the dancefloor, 505, Do me a favour, Cornerstone, Do I wanna know? ou R U mine (a última do encore), algumas das quais incorporam elementos novos trazidos pelos músicos auxiliares, mas mantendo a essência, e lugar para baladas de som estilizado, com Alex Turner sentado ao piano, recriando um ambiente deliciosamente sedutor em temas como One point perspective, She looks like fun, Star treatment, Tranquility Base Hotel & Casino ou Four out of five.
Para nós, não existe paradoxo. Os dois universos podem coabitar. E os Monkeys interpretam-nos bem. Mas nitidamente, sempre que entravámos em ambiente de casino, havia muita gente que se distraía falando com os amigos ou que lançava olhares tentadores à volta – afinal é para isso que serve a dita música de casino –, voltando a concentrar-se apenas quando eram tocadas as canções que já se ouviram inúmeras vezes. E o dilema dos Monkeys da actualidade parece ser esse: como gerir o efeito de reconhecimento que parte do público procura num ambiente de festival, sem trair a vontade de se desafiarem e de desbravar outros territórios?
Compor o alinhamento
Um homem experiente como Bryan Ferry, que pisou o mesmo palco ao final da tarde, diria para confiarem no seu instinto, porque ao longo dos anos renasce-se várias vezes. Não se trata de separar, mas de acumular. No seu caso, aos 73 anos, tanto se serve do reportório dos Roxy Music como do percurso a solo, para apresentar canções aveludadas como Slave to love ou Avalon ou para se movimentar por terrenos mais rock como Virginia plain ou, no final, Let’s stick together. Fá-lo com requinte e competência, acompanhado por um naipe de músicos de grandes recursos, mas o efeito gerado na assistência, tirando alguns mais indefectíveis, não foi muito motivador.
Não houve demonstrações de enfado. Nada disso. Mas também poucos recordarão aquele momento. Há aliás bandas nos cartazes de festivais cuja função no alinhamento parece ser actuar entre os nomes mais desejados. É o caso, algo misterioso, dos escoceses Snow Patrol, o tipo de grupo que, aos poucos, foi granjeando uma grande legião de admiradores sem que se perceba exactamente porquê. Tudo neles é algo formatado e previsível, mas, colocados entre os Nine Inch Nails e os Arctic Monkeys, cumpriram com o seu papel: entreter sem incomodar muito.
Quem beneficiou desta atmosfera algo dormente acabaram por ser os grupos que apostaram nas emoções à flor da pele, como os Nine Inch Nails ou os Wolf Alice. O grupo de Trent Reznor deu um bom concerto, em crescendo, sabendo dosear a contundência sónica e as descargas viscerais com momentos mais envolventes, fazendo participar o público no cerimonial. É evidente uma ressonância geracional na sua música (aliás em todo o festival, com os anos 1990 a predominarem, em primeiro lugar pela presença dos Pearl Jam este sábado) e por vezes sente-se que ficaram reféns dela, mas isso não perturbou uma prestação convincente, entre a electrónica orgânica e saturada de Closer e o industrialismo de Head like a hole, passando pelo dinamismo rítmico de Copy of A, tudo pontuado pela entrega total de Reznor e seus cúmplices. Por vezes a assistência parece alheada, mas logo de seguida os Nine Inch Nails conseguem conquistá-la, mantendo sempre uma presença intensa.
Para o final guardarão alguns dos melhores momentos. Uma recriação de I’m afraid of americans, que Reznor apresentou como pertencendo a “alguém muito inspirador e um amigo”, ou seja, David Bowie, e Hurt, a última da noite, que Johnny Cash haveria de reinterpretar de forma magistral pouco tempo antes de morrer em 2002. Ali, na voz de Reznor, soou desnudada, lírica, emocionante. Ou seja, soou muito bem.
Mais à flor da pele só os ingleses Wolf Alice, que conquistaram logo no início, com um rock impetuoso, que consegue ser tão intempestivo quanto imediato, pelas soluções melódicas que apresenta e ficam no ouvido. As atenções concentram-se na vocalista e guitarrista Ellie Rowsell, mas é a coesão do quarteto que fica registada, enquanto vão desfiando as canções dos seus dois álbuns com desenvoltura. Por vezes as suas canções rock de sensibilidade harmónica aproximam-se perigosamente do som "jovem" para anúncios de telemóvel, mas nunca chegam a esse ponto. Há uma linha que não atravessam, com rasgos de guitarra nutritivos, um som cheio e uma presença enérgica. Percebe-se que num futuro próximo poderão aceder aos palcos principais.
No palco Sagres, onde actuaram, só se gerou mais entusiasmo quando entrou em cena o americano Khalid, fenómeno entre o público juvenil pela forma como tece canções pop de sensibilidade urbana, afinal um pouco da mesma estratégia do britânico Sampha – que actuaria horas depois no mesmo local –, este numa linha mais amadurecida. À mesma hora, no palco Nos Clubbing, os Orelha Negra mostravam a solidez habitual, com um som físico e uma ambiciosa componente cénica, num cenário onde já tinha acontecido júbilo antes com os Paus na companhia do rapper Holly Hood, no contexto de um festival que contém sete pontos de atracção diferenciados.
Há sempre muito por onde escolher, mas existem sempre alvos preferenciais. Na primeira noite a maior parte das atenções estiveram direccionadas para os Arctic Monkeys com as sensibilidades a dividirem-se. Esta sexta-feira o festival continua com Queens Of The Stone Age, The National, Future Islands, Black Rebel Motorcycle Club, Eels ou Yo La Tengo. Vão voltar os néones. O ambiente de casino promete estar mais ausente. Mas aceitam-se novamente apostas sobre quem vai brilhar mais.