A bondade linguística e o cadáver adiado
O colóquio não era sobre ortografia, era sobre Unidade e Diversidade da Língua Portuguesa, mas como falar de diversidade sem pôr em causa a falsa “unidade” que a ameaça?
Quem for esta noite ao Coliseu de Lisboa (ou sexta-feira ao Coliseu do Porto) ouvirá Alceu Valença, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo cantarem uma canção que a dado momento diz assim: “Tem pena d’eu”. Ou seja, “tem pena de mim”. A canção, um clássico não só do repertório nordestino mas de toda a música brasileira, é um baião, chama-se Sabiá e foi composta por Luiz Gonzaga e Zé Dantas em 1951. A frase citada, que os puristas considerarão errada, reproduz um dos muitos termos do falar nordestino, um falar que é aliás riquíssimo, não só em regionalismos como no uso de termos portugueses há muito em desuso.
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Quem for esta noite ao Coliseu de Lisboa (ou sexta-feira ao Coliseu do Porto) ouvirá Alceu Valença, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo cantarem uma canção que a dado momento diz assim: “Tem pena d’eu”. Ou seja, “tem pena de mim”. A canção, um clássico não só do repertório nordestino mas de toda a música brasileira, é um baião, chama-se Sabiá e foi composta por Luiz Gonzaga e Zé Dantas em 1951. A frase citada, que os puristas considerarão errada, reproduz um dos muitos termos do falar nordestino, um falar que é aliás riquíssimo, não só em regionalismos como no uso de termos portugueses há muito em desuso.
Ora a empatia que suscita a audição de Sabiá, tal como outras canções de Luiz Gonzaga ou Jackson do Pandeiro, só para citar dois dos compositores mais celebrados da música nordestina, conduz-nos a outro tipo de atracção: a das palavras, frases e termos que têm em si uma cultura e uma história, mesmo que os dicionários (excepto os de curiosidades ou regionalismos) não as acolham. Não foi bem disto que tratou o colóquio da Academia das Ciências de Lisboa da passada terça-feira, mas também foi disto. Expressões minoritárias, línguas nacionais em perigo de extinção (mormente algumas das africanas), falares que, por desconhecimento ou desprezo pretensamente erudito, se vêem reduzidos à classificação de “dialectos”. E se Adriano Moreira, na abertura, começou por dizer que “a língua não é nossa, também é nossa”, numa intervenção que se pretendeu esperançosa mas também eivada de cautelas (“o método da declaração seria mais recomendável”, disse ele já no final, referindo-se à CPLP, onde imperam imposições linguísticas), houve quem recordasse que em 1922, no centenário da independência do Brasil, o académico brasileiro Medeiros e Albuquerque (1867-1934) disse: “A supremacia da língua passou para nós” ou “o dono da língua, hoje, é o Brasil.” Quem registou tais frases nas suas obras foi o escritor português João Araújo Correia (1899-1985), ali lembrado e saudado, que por sua vez escreveu: “considero insolúvel o problema ortográfico luso-brasileiro”; e, falando das reformas ortográficas que enxamearam a língua portuguesa ao longo de todo o século XX, sentenciou: “admite-se século a século, de oito em oito dias é demais!”
O colóquio não era sobre ortografia, era sobre Unidade e Diversidade da Língua Portuguesa, mas como falar de diversidade sem pôr em causa a falsa “unidade” que a ameaça? Impossível. Porque sobre as mais singelas manifestações de bondade linguística continua a pairar a sombra de um cadáver adiado: o dito “acordo ortográfico” de 1990. Que foi directamente citado e posto em causa nalgumas das intervenções programadas (Ivo Miguel Barroso, Rafael Gomes Filipe, Manuel Alegre, Carmen de Frias e Gouveia, Fernando Paulo Baptista, este último recorrendo a uma exposição visual e quase poética da diversidade do planeta e do cosmos para melhor fazer entender a defesa da diversidade linguística e ortográfica), aflorado noutras e usado ou ignorado nas mais específicas, sobre neologismos ou crioulos (o português de Damão está vivo e recomenda-se, assegurou o padre António Colimão; assim como no Luxemburgo o português tem um forte peso social reafirmado em votação parlamentar, testemunhou António Callixto).
Mas voltemos à diversidade. João Abel da Fonseca deu-se conta, numa visita recente a Moçambique, de um lote considerável de características dos falares locais, percebendo que o “abatanado” que bebe em Portugal ali se chama “banheira”, que um carro de transporte colectivo é “chapa my love” (vai tudo muito apertado, num involuntário “namoro”); que “xitimela” é, para muitos, comboio; e que “bichar, empeado pro vodacomes” é nada mais do que estar em fila, de pé, à espera de carregar com dinheiro o telemóvel. Ora se nos tempos da resistência se cantava “não há machado que corte a raiz ao pensamento” (Carlos de Oliveira na voz de Manuel Freire ou do Coro da Academia de Amadores de Música, aqui musicado por Fernando Lopes-Graça), também não há acordo ortográfico que “unifique” esta livre expressão. Desse ponto de vista, o colóquio foi profícuo, esperando-se agora que uma divulgação das comunicações permita relê-las e torná-las motor de novos debates, não só em prol do reconhecimento das variantes do português (faladas e ortográficas), como da perenidade das línguas maternas, sobretudo africanas, que com ele partilham vozes e nele se vão misturando, enriquecendo-o. Que triunfe, pois, a diversidade!