Morreu Laura Soveral, a actriz que iluminou os ecrãs e os palcos
Teve uma carreira longa, iniciada no teatro, mas que acompanhou a trajectória do cinema português desde a década de 60. Nos últimos anos, fez sobretudo televisão.
“O cinema é para receber a luz, e há actores que nascem com esse dom, como a Laura Soveral, que sabia como responder a isso, sabia como transformar a sua presença no grande ecrã em luz.” Ainda não refeito da comoção perante a notícia que lhe dávamos, João Botelho comentou assim a morte da actriz que com ele trabalhou em meia dúzia de filmes.
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“O cinema é para receber a luz, e há actores que nascem com esse dom, como a Laura Soveral, que sabia como responder a isso, sabia como transformar a sua presença no grande ecrã em luz.” Ainda não refeito da comoção perante a notícia que lhe dávamos, João Botelho comentou assim a morte da actriz que com ele trabalhou em meia dúzia de filmes.
Laura Soveral, cuja longa carreira acompanhou a trajectória do teatro, do cinema e da televisão em Portugal desde a década de 1960, morreu esta quinta-feira aos 85 anos no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde se encontrava internada. Padecia de esclerose lateral amiotrófica.
Aqui na Terra, A Mulher Que Acreditava Ser Presidente dos EUA, O Fatalista, A Corte do Norte, Filme do Desassossego e Os Maias – Cenas da Vida Romântica são os filmes em que Laura Soveral foi actriz de João Botelho, ao longo de duas décadas. Do primeiro deles, recorda-se bem Luis Miguel Cintra, principalmente da cena em que o seu personagem, Miguel, dançava com uma mulher-a-dias. “É uma cena muito comovente!”, comenta o actor, lamentando a perda de “uma grande companheira” com quem trabalhou igualmente em filmes de Manoel de Oliveira (A Divina Comédia e Vale Abraão). E que acolheu e dirigiu no (seu) Teatro da Cornucópia, nos anos 90, nas produções Primavera Negra, a partir de Raul Brandão, e O Lírio, Vida e Morte de um Malandro, de Ferenc Molnár, esta com encenação de Christine Laurent.
“Era uma pessoa linda, muito elegante, culta, inteligente”, continua Cintra, realçando o facto de Laura Soveral se “interessar verdadeiramente pela peça ou pelo filme que ia fazer para além do seu próprio papel” – quando chegava a sua vez, “sentia-se essa preparação, essa diferença”.
Tanto o actor e ex-director da Cornucópia como João Botelho recordam vivamente, mais lá atrás no tempo, o trabalho de Laura Soveral no filme de Fernando Lopes (1935-2012) Uma Abelha na Chuva (1971). “Já aí ela era enorme: a sua representação criava uma angústia nas pessoas, nos espectadores”, diz o realizador.
A presença de Laura Soveral nessa obra marcante da segunda leva do Cinema Novo português é também assinalada pelo crítico Jorge Leitão Ramos, que assim a descreve no seu Dicionário do Cinema Português, 1962-1988 (Caminho): “Numa cinematografia como a portuguesa, raro é retermos um personagem, raro é sentirmos coisas tão fortes como a altivez, o despeito, a raiva e o desejo sepultado no peito de uma mulher e só entrevistos em breves sinais, revelações.”
António Pedro Vasconcelos (Oxalá, 1981), Margarida Gil (Relação Fiel e Verdadeira, 1987; O Anjo da Guarda, 1998), Teresa Villaverde (Os Três Irmãos, 1993), José Fonseca e Costa (Cinco Dias, Cinco Noites, 1996), Luís Filipe Rocha (Adeus, Pai, 1996), José Álvaro de Morais (Quaresma, 2003), Marco Martins (Alice, 2005), Bruno de Almeida (The Lovebirds, 2007) e Miguel Gomes (Tabu, 2012) foram alguns dos muitos cineastas portugueses com quem trabalhou.
A carreira de Laura Soveral foi também evocada pela Academia Portuguesa de Cinema (APC), cujo presidente, Paulo Trancoso, a classificou como “uma das nossas imortais”. “A Laura deixou a sua marca nos filmes, no teatro e na televisão, com uma diversidade enorme no número de realizadores com quem trabalhou, dos mais jovens aos mais antigos”, disse Trancoso ao PÚBLICO, falando da saudade que deixa esta figura “doce, calma, linda": "Deixava em nós uma sensação de grande prazer por termos estado com ela.”
De Angola para Lisboa
Laura Soveral nasceu em Benguela, Angola, em 1933, e iniciou-se no teatro, e logo a seguir na televisão, em Lisboa, para onde viajou em 1962 para estudar Filologia Germânica na Faculdade de Letras. Interrompeu o curso precisamente por causa do teatro, tendo-se estreado nos palcos em 1963 com o Grupo Cénico, e no mesmo ano na RTP, numa peça sobre Fernando Pessoa, O Homem Multiplicado, com realização de Herlânder Peyroteo.
Nessa primeira década, Laura Soveral foi-se dividindo entre o teatro, o pequeno ecrã e também a rádio. Passou pelos palcos da Casa da Comédia, do Teatro Experimental de Cascais, do Novo Grupo/Teatro Aberto, da Barraca, e viu o seu trabalho distinguido com os prémios Bordalo (1968) e da Casa da Imprensa (1969). Na viragem para a década seguinte, co-apresentou, com Artur Agostinho e Glória de Matos, o programa Curto-Circuito, da RTP.
Em 1975, certamente por via do seu casamento com um dos filhos de Marcelo Caetano, o último Presidente do Conselho do Estado Novo, exilou-se no Brasil, onde viria a participar em duas telenovelas da influente TV Globo, O Casarão e Duas Vidas.
Não sendo uma militante na área da política, "percebia-se" – nota Luís Miguel Cintra – "que a Laura Soveral se demarcava do Estado Novo, e, apesar da sua discrição pessoal, estava do lado da esquerda moderada”.
Regressou a Portugal em 1977, e continuou a mostrar a sua versatilidade também no meio televisivo, tendo já mais recentemente actuado em ficções juvenis como Morangos com Açúcar ou Chiquititas, mas também em séries dramáticas como Liberdade 21 ou O Dia do Regicídio.
Em 2006, Graça Castanheira realizou para a RTP o documentário Laura, A Inquietação de Estar Viva, sobre “uma actriz maior” de quem destacava a “presença notável, a voz audaz e articulada, os traços de recorte distinto, a agilidade precisa dos gestos, a inteligência interpretativa e um talento inequívoco”.
A Academia Portuguesa de Cinema atribuiu-lhe em 2013 o Prémio Sophia de Carreira e, em 2016, o Prémio Bárbara Virgínia. Distinções para um percurso que se dividiu sempre entre os palcos e os ecrãs, até ao filme Os Maias: Cenas da Vida Romântica (2014), que chegaria também, na versão de série, à RTP. A partir daí, a doença degenerativa de que sofria impediu-a de prosseguir, e recolheu-se na Casa do Artista.
A família informou que não estão agendadas cerimónias fúnebres, uma vez que a actriz doou o seu corpo à ciência.
“Espero que a Laura Soveral continue a representar ‘lá em cima’”, despede-se João Botelho. com Joana Amaral Cardoso