O legado da escravatura e as narrativas de Lisboa
O comércio Atlântico criou uma demanda sem precedentes que extrapolou o tráfico interno africano.
É impossível alterar o passado. Mas podemos alterar o presente. Mas para alterar o presente precisamos compreender e reconhecer o passado. Deve-se reconhecer um legado histórico deixado pela escravatura atlântica, que é facilmente identificado nas coisas mais fundamentais, desde uma determinada linguagem quotidiana de cunho racista que usamos na língua portuguesa – talvez por herança – à toponímia de Lisboa. Há hipóteses, por exemplo, de que o nome da Rua do Poço dos Negros talvez faça referência a uma vala onde os cadáveres de escravos não batizados eram depositados. E a Rua da Preta Constança, na Ajuda? Diz-se que Preta Constança era uma “escrava trazida dos confins de África” e “viveu a fortuna, a desilusão e a desgraça neste bairro lisboeta”. Mas o que é que os nomes de ruas lisboetas têm a ver com esta discussão? Estas exemplificam um legado impregnado no espaço urbano que mal vemos, compreendemos ou sequer reconhecemos. No meio científico, há quem chame a isto de desenterrar histórias da arquitetura ou do espaço urbano de “narrativa arqueológica”. Poderemos, portanto, reconhecer a história de certos espaços urbanos se escavarmos e trouxermos à tona estas narrativas. O mesmo se passa com a história em geral. Daí a relevância de um memorial de escravos ou de um museu que exponha o tema através de documentos históricos, narrativas e imagens. Mas antes, é preciso uma compreensão do passado (e do que se quer), que passa também por reconhecer certos legados.
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É impossível alterar o passado. Mas podemos alterar o presente. Mas para alterar o presente precisamos compreender e reconhecer o passado. Deve-se reconhecer um legado histórico deixado pela escravatura atlântica, que é facilmente identificado nas coisas mais fundamentais, desde uma determinada linguagem quotidiana de cunho racista que usamos na língua portuguesa – talvez por herança – à toponímia de Lisboa. Há hipóteses, por exemplo, de que o nome da Rua do Poço dos Negros talvez faça referência a uma vala onde os cadáveres de escravos não batizados eram depositados. E a Rua da Preta Constança, na Ajuda? Diz-se que Preta Constança era uma “escrava trazida dos confins de África” e “viveu a fortuna, a desilusão e a desgraça neste bairro lisboeta”. Mas o que é que os nomes de ruas lisboetas têm a ver com esta discussão? Estas exemplificam um legado impregnado no espaço urbano que mal vemos, compreendemos ou sequer reconhecemos. No meio científico, há quem chame a isto de desenterrar histórias da arquitetura ou do espaço urbano de “narrativa arqueológica”. Poderemos, portanto, reconhecer a história de certos espaços urbanos se escavarmos e trouxermos à tona estas narrativas. O mesmo se passa com a história em geral. Daí a relevância de um memorial de escravos ou de um museu que exponha o tema através de documentos históricos, narrativas e imagens. Mas antes, é preciso uma compreensão do passado (e do que se quer), que passa também por reconhecer certos legados.
A respeito dos legados, há quem levante o que seguinte questionamento: os portugueses foram os primeiros a levarem pessoas escravizadas de África para as Américas? Isto é um facto histórico partilhado nas publicações de historiadores portugueses (Arlindo Manuel Caldeira, no livro Escravos e Traficantes no Império Português) bem como de não-portugueses (Linda Heywood, Anthony T. Browder, John Thornton, James A. Rawley e Stephen D. Behrendt). Os portugueses foram pioneiros no tráfico atlântico em direcção à Europa e, cerca de 1520, prolongam-no para as Américas e Antilhas, com algum suporte castelhano. Mas isto não quer dizer que foram os portugueses de outrora a inventarem a escravidão em África. Naquele período, a escravidão era uma instituição legal e bem estabelecida naquele continente. Para além da África, era e tinha sido praticada noutras sociedades como na China, na Índia, na Coreia, no mundo árabe, no Império Otomano e na Rússia. De facto, os árabes-muçulmanos chegaram a escravizar não só negros como brancos católicos europeus. Os árabes também tinham ido até às costas alemãs e à Bulgária para comprar escravos eslavos germânicos. Uma pitada de etimologia dá mais sabor à nossa discussão: a origem da palavra inglesa slave (escravo em português) vem do facto de os árabes terem vendido muitos esclaves ou slavs (eslavos em português). Sabe-se que até ao século XV a maioria dos escravos são de pele branca.
Voltando aos africanos da África central, é importante dizer que estes tiveram sim uma participação ativa no tráfico de africanos no Atlântico; não foram apenas vítimas, algo bem articulado na obra não maniqueísta do historiador norte-americano John Thornton. Uma diferença, no entanto, entre a escravização feita pelos africanos e a atividade comercial iniciada pelos portugueses é a escala e a dimensão transatlântica. Assim como lembrou o historiador brasileiro Luis Felipe de Alencastro numa entrevista recente, a propósito da abolição da escravatura em 1888, celebrada a 13 de maio no Brasil, em África os africanos desenvolviam comércio de escravos em localidades, limitando-se aos circuitos regionais das zonas económicas africanas. No entanto, o comércio Atlântico criou uma demanda sem precedentes que extrapolou o tráfico interno africano. Antes do tráfico atlântico, por exemplo, os escravos na África costumavam ser cativos de guerra, devedores ou criminosos. Além disso, escravos na África eram raramente usados em plantações, mas em vez disso, na maioria das vezes, foram simplesmente realocados e tratados mais ou menos como outros agricultores, em aldeias autónomas.
Após a intensiva e crescente demanda de escravos pelos portugueses colonizadores, especialmente durante a colonização do Brasil e a massiva produção de café ou cana-de-açúcar, começou a existir um tráfico ilegal de africanos livres, inclusive de homens e mulheres da nobreza. Embora esta ilegalidade tenha sido criticada e combatida por alguns portugueses e africanos, a geração de guerras foi também intensificada, uma vez que os conflitos internos eram um mecanismo para a criação de escravos – afinal, os perdedores eram mantidos como cativos e escravizados. Estima-se que cerca de 11 milhões (um pouco mais do que a população atual de Portugal) de africanos escravizados foram levados para as Américas a partir do tráfico transatlântico. Portanto, a escravização de africanos passou de uma escala local/regional para uma escala intercontinental, com a invenção do comércio atlântico. Dito isto, é leviano suavizar a história do tráfico atlântico com o argumento de que já existia escravatura em África. Primeiro, porque são sistemas distintos. Segundo, e sobretudo, porque é preciso que se entenda e se reconheça que os efeitos do massivo comércio atlântico refletem-se ainda nos dias de hoje.
Um destes efeitos, talvez o mais socialmente corrosivo para as pessoas com a cor escura, vem da “racialização” da escravidão, a associação de escravo com um ser de cor negra ou preta e a imaginação “do negro” como uma “categoria racial inferior”. Se até ao século XV a maioria dos escravos são de pele branca, por que é que isto acontece? Esta racialização tem origens no tráfico atlântico, em meados do século XVI, em que a cor de pele passa então a ser associada a estatuto social, de tal modo, como diz o historiador português Arlindo Manuel Caldeira e outros investigadores estrangeiros, “que a palavra ‘negro’ torna-se sinónimo de escravo”, embora haja em Portugal escravos brancos até ao século XVIII. Esta racialização tem a ver com o facto de, a partir do tráfico atlântico, a maioria dos escravizados passa a ser originária da África subsariana, de pele não-branca.
Tal termo “negro” associado à cor da pela e à escravatura, por sua vez, gera uma série de expressões idiomáticas de cunho racista, àquilo ao qual chamei neste jornal “racismo idiomático”. Neste debate que se desdobra em Portugal sobre descoberta ou descobrimentos, escravatura, colonização e racismo, este legado desta racialização é um dos pontos que devemos também ter em atenção, pelos seus efeitos na sociedade contemporânea, e por ser algo que ainda podemos desmantelar, com a criação de políticas culturais e educacionais ou ainda, e sobretudo, pela conscientização das mentes, nas escolas, nos meios de comunicação social e até nas conversas de bar.
Como disse antes: é impossível alterar o passado. Mas podemos alterar o presente. Mas para alterar o presente precisamos compreender e reconhecer o passado. Como maneira de reconhecer a história complexa e interrelacionada de Portugal e África, e da própria escravatura, e para contribuir para a criação de uma narrativa arqueológica das futuras gerações, faço uso de uma sugestão de Linda Heywood, historiadora e professora na Universidade de Boston, EUA. Numa palestra sobre o seu livro Nzinga de Angola. A Rainha Guerreira de África (editado em Portugal pela Casa das Letras, 2018) na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no último dia 10 de maio, a historiadora sugeriu que Lisboa tivesse uma estátua de Rainha Njinga. Creio que a sugestão deve ser considerada, uma vez que esta figura feminina africana representa a complexidade da história da escravatura. Além de ter rompido estereótipos de género ao liderar verdadeiros exércitos, Rainha Njinga possuiu escravos e também os vendeu, tendo assim participado no tráfico de escravos. No entanto, também defendia que havia limites de quem poderia ser ou não ser escravizado e também lutou contra os colonizadores portugueses. No fim da sua vida, converteu-se ao cristianismo e fez as pazes com Portugal. Quem sabe se a materialização de uma Rainha Njinga no espaço urbano de Lisboa nos ajude a despir-nos de uma visão maniqueísta da escravatura? E quem sabe se, ao despir-nos de uma visão maniqueísta da escravatura, conseguimos reconhecer melhor o passado?
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico