Por favor, não confundam o liberalismo com o neoliberalismo
O neoliberalismo subverte, se não mesmo mina, a tradição liberal e os princípios políticos a ela associados.
Representando-se como liberais, os apoiantes dos ideais neoliberais entendem que qualquer crítica ao neoliberalismo é um ataque ao liberalismo. Interpretam as objecções ao neoliberalismo como se estas emanassem de princípios forçosamente antiliberais. Porém, o neoliberalismo subverte, se não mesmo mina, a tradição liberal e os princípios políticos a ela associados (constitucionalismo, liberdade, império da lei, individualismo, contrato, consentimento e vontade do povo).
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Representando-se como liberais, os apoiantes dos ideais neoliberais entendem que qualquer crítica ao neoliberalismo é um ataque ao liberalismo. Interpretam as objecções ao neoliberalismo como se estas emanassem de princípios forçosamente antiliberais. Porém, o neoliberalismo subverte, se não mesmo mina, a tradição liberal e os princípios políticos a ela associados (constitucionalismo, liberdade, império da lei, individualismo, contrato, consentimento e vontade do povo).
Apesar das várias articulações de ideias neoliberais em múltiplos locais (América Latina, Europa, China) e em múltiplas escalas (nacional, internacional, global), o neoliberalismo traduz para a sociedade a ordem mercado económico. Sob esta tradução, a sociedade é constituída por indivíduos livres cujo bem-estar individual e agregado não depende de um plano intencional humano e comum, mas da intervenção de uma força espontânea (porque não intencional), grosso modo associada à metáfora da mão-invisível. Como qualquer plano comum é sempre enviesado pelo interesse privado, a sua aplicação pelos governos implica que alguns indivíduos impõem os seus interesses privados aos demais. Consequentemente, o bem-estar de todos depende de um poder espontâneo (do laissez-faire) que garante a realização dos fins individuais independentemente de restrições públicas.
Dadas aquelas premissas, o objetivo principal do neoliberalismo consiste em criar as condições políticas formais para promover a salvaguarda do bem-estar geral independentemente dessas restrições. Essa criação política transforma o laissez-faire do mercado num imperativo político, de tal maneira que o domínio da deliberação política é assim restringido, e mesmo destruído, pela necessidade fatalista dos mecanismos do mercado económico. Portanto, a fim de criar uma sociedade análoga a esse mercado, os governos devem fazer com que os cidadãos irrestritamente obedeçam à ordem política, e já não apenas económica, do laissez-faire. Doravante, os cidadãos devem renunciar a co-deliberar sobre questões públicas, sob uma sua identidade política comum, ou seja, como um povo. Em contrapartida, o âmbito da sua deliberação restringe-se às suas escolhas puramente privadas para satisfazer fins também exclusivamente privados.
Não há alternativa (There Is No Alternative ou TINA, em inglês) desempenha um papel importante nesse processo. Como resposta à existência do povo, TINA proíbe a legislação resultante da deliberação pública, entendida como um limite ilegítimo ao laissez-faire do mercado económico. Dito de outra maneira, como uma estratégia retórica persuasiva, TINA convida os cidadãos a consentir a inevitabilidade dos mecanismos do mercado económico e, finalmente, a renunciar à sua liberdade política. Não é por isso casual que TINA tenha acompanhado quase sempre a divulgação das políticas neoliberais (na Grã-Bretanha no tempo de Thatcher, no Portugal de Passos Coelho, na Alemanha de Merkel, na Grécia de Tsipras, no Chile de Pinochet, na Argentina de Menem, no Brasil de Collor de Mello e no Peru de Fujimori).
Em contrapartida, ao invés de estabelecer uma coincidência entre o Estado e o mercado, e apesar da constante tensão entre a ordem económica e a ordem política (e.g. a imposição de limites políticos à liberdade dos mercados e a reconfiguração do poder dos Estados), o liberalismo económico (e.g. Adam Smith, Keynes) e os liberalismos políticos clássico (e.g. John Locke e Immanuel Kant) e contemporâneo (e.g. John Rawls) não fazem coincidir o mercado económico com o Estado político, não rejeitam a noção de povo e não implicam a existência de TINA. Por exemplo, Smith reconhece o papel do Estado como uma instituição pública autónoma (e.g. o Estado fornece bens públicos, como a educação, segurança, defesa comum, administração pública da justiça, o lazer e trabalho). De facto, uma coisa é a divergência teórica sobre a descrição económica das regras do mercado económico (por exemplo, a divergência entre marxistas e liberais), outra coisa completamente diferente é supor que na perspetiva de Smith os princípios económicos dos mercados são também aplicados aos Estados. Para além disso, Smith considera que os monarcas deliberam na perspetiva das “diferentes ordens do povo” e não na perspetiva dos indivíduos encapsulados nos seus interesses puramente privados.
Locke argumenta que quando os indivíduos se unem para constituir uma sociedade política baseada no consentimento este transforma-os num só povo ou corpo político. Subjacente às constituições do governo e aos governos, o povo soberano pode e deve mudar a legislação política, nos níveis parlamentar e constitucional, se ela for arbitrária, abusiva ou se se tornar inadequada. Por essa razão, no liberalismo de Locke, a escolha dos indivíduos tem um alcance coletivo — os indivíduos escolhem os princípios políticos gerais da sua sociedade política — e é primordial que eles estejam cientes de que a sua legislação política pode ser diferente. Refira-se que o facto de os indivíduos deliberarem como um corpo comum não implica a privação de direitos individuais (e.g. liberdade, propriedade). A constituição do povo soberano é concomitante com o estabelecimento de uma carta Constitucional cujo principal objetivo é proteger os direitos políticos dos indivíduos.
Finalmente, Rawls aponta para o desacordo inevitável na cultura pública das sociedades democráticas liberais (por exemplo, as diferentes interpretações públicas das ideias fundamentais da cultura pública de uma sociedade democrática inspiradas no socialismo, social-democracia e liberalismo). Sublinhando a condicionalidade, avaliação e limitação dos princípios políticos, o liberalismo político de Rawls estabelece que uma característica essencial das comunidades políticas é a sua contingência, i.e. o facto de as coisas poderem ser de outra maneira. Na sociedade política há sempre alternativa(s).
Na eventualidade de duvidarmos da necessidade de distinguir o neoliberalismo do(s) liberalismo(s), é conveniente sublinhar que a TINA priva as sociedades dos meios liberais e democráticos (por exemplo, a escolha política dos cidadãos) para canalizar os sentimentos e as perceções dos cidadãos sobre a injustiça. A menos que o vazio deixado por um sistema que no seu núcleo ideológico não satisfaz as reivindicações dos povos seja ocupado pelo respeito da deliberação pública sob o império da lei, aquela privação dificilmente impede que aqueles sentimentos e perceções sejam canalizados pelas organizações e pelos políticos antidemocráticos e antiliberais.
Acresce que no contexto da globalização, i.e., de uma cada vez maior interdependência dos Estados e dos povos, os liberais estão justamente preocupados com o incremento das tendências iliberais. Por exemplo, o jornal Economist quer lançar o debate sobre os valores políticos liberais. Admitindo que o valor político da co-deliberação dos cidadãos, enquanto membros de um corpo político, é um valor liberal, é tão inquietante a subversão do princípio da separação dos poderes na Polónia como o facto de, na sequência da crise financeira de 2008, três partidos diferentes (Nova Democracia, PASOK e Syriza), com ideologias políticas distintas, terem governado a Grécia no âmbito do mesmo programa político. Para além da violação dos princípios liberais do consentimento e do contrato social, tal facto evidencia a exclusão da liberdade política dos cidadãos gregos.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico