Pode haver tourada sem sofrimento animal?

Numa sociedade livre e democrática só devemos manter as tradições se quisermos. Se não nos identificarmos, se forem macabras ou nefastas, se entrarem em conflito com os valores da nossa época, nada nos obriga a que as mantenhamos.

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Giovanni Calia/Unsplash

Touradas provocam-me repulsa. Admito alguma simpatia apelas pelos forcados, talvez pela coragem que exige enfrentar de mãos despidas um touro. Parece ficção, especialmente para os estrangeiros, mas em Portugal pegam-se touros com as mãos — ainda que feridos e cansados.

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Touradas provocam-me repulsa. Admito alguma simpatia apelas pelos forcados, talvez pela coragem que exige enfrentar de mãos despidas um touro. Parece ficção, especialmente para os estrangeiros, mas em Portugal pegam-se touros com as mãos — ainda que feridos e cansados.

Invoca-se a importância da tourada por questões de tradição e cultura. São argumentos simultaneamente válidos e inválidos. Felizmente abolimos muitas tradições e formas de cultura porque as consideramos despropositadas. Ser tradição não é justificação para se continuar a fazer uma determinada actividade, especialmente quanto está carregada de negatividade. As tradições nasceram de inovações que se foram estabelecendo. Na sua origem está sempre uma novidade que concorreu com outras práticas mais antigas. Esses processos geraram e continuam a gerar produção e substituição cultural, quer gostemos ou não.

Numa sociedade livre e democrática só devemos manter as tradições se quisermos. Se não nos identificarmos, se forem macabras ou nefastas, se entrarem em conflito com os valores da nossa época, nada nos obriga a que as mantenhamos.

Na tourada, tudo será negativo? Porque não reinventar e mudar mantendo aquilo que é positivo? Porque tem de haver sofrimento animal no processo? Se tantas actividades mudaram para se adaptarem, porque temos de continuar a massacrar touros, num processo que começa com o transporte, a preparação para uma arena adversa, múltiplas estocadas de bandarilhas, um animal a esvair-se em sangue e um posterior tratamento que, muitas vezes, leva a uma morte longa e agoniante que serve para fins de entretenimento?

Porque não substituir as bandarilhas por sistemas de ventosas ou outros? Porque não fazer um transporte mais digno do touro? Porque não colocar protecções nos cornos em vez de os serrar?

Não me digam que tal não é possível por questões de tradição. Só má vontade o justifica. Pode parecer absurdo, mas os cavaleiros também não são forçados a ter cabelo comprido. Usam rabos-de-cavalo colados aos casacos. Então isso não é uma quebra de tradição nos hábitos da indumentária que herdados do século XVIII? Esta comparação é ofensiva perante o sofrimento do touro em nome da tradição, mas serve de exemplo comparativo para vermos o ridículo desta situação.

Por outro lado, só se não for possível adaptar, mantendo a essência desta actividade e tradição, é que será legítimo proibir. Proibir os maus tratos aos touros talvez seja mesmo a única possibilidade de manter esta tradição, com as devidas adaptações. Porque não fazer uma tourada virada para a dignidade do touro? Se o paradigma mudar, talvez a tourada tenha futuro. Se tudo se mantiver estará condenada a desaparecer, mais tarde ou mais cedo.