O que nasce na terra desta prisão também sabe a liberdade
Dentro dos muros da prisão de Tires, aproveita-se a força de quem está privado de liberdade para fazer nascer da terra abandonada fruta e legumes para serem vendidos e doados a instituições sociais.
Começou “do nada” e, em poucos meses, do mato e das pedras se fez beringela, repolho, feijão, courgette, tomate e alface. Dentro dos muros da prisão de Tires, a terra também é o chão da vida de mulheres que estão “privadas de liberdade” e que “com empenho, amor e crença” — as palavras são delas — estão a ver o trabalho numa horta com uns bons milhares de metros quadrados dar frutos enquanto esperam a liberdade.
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Começou “do nada” e, em poucos meses, do mato e das pedras se fez beringela, repolho, feijão, courgette, tomate e alface. Dentro dos muros da prisão de Tires, a terra também é o chão da vida de mulheres que estão “privadas de liberdade” e que “com empenho, amor e crença” — as palavras são delas — estão a ver o trabalho numa horta com uns bons milhares de metros quadrados dar frutos enquanto esperam a liberdade.
O dia ali na horta não é fácil, garantem Natália, Gabriela e Cátia, três das seis reclusas que tomam conta daquelas terras. É preciso muita força de braços, aguentar o sol forte destes dias de Verão, mas o consolo no final da jornada chega quando se lembram que dali os produtos vão chegar a quem precisa deles. Ontem, trocaram-se as enxadas por gestos e palavras bonitas, com a entrega dos vegetais das primeiras sementeiras que elas próprias têm vindo a fazer desde o início do ano.
“É muito bom a gente começar do nada. Há uns meses isto não era nada”, diz Natália Cardoso, uma das reclusas responsáveis por fazer multiplicar a vida na horta do Brejo.
No ano passado, a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, Estabelecimento Prisional de Tires e a Câmara Municipal de Cascais, lançaram-se num projecto para a recuperação de uns terrenos abandonados dentro da prisão, para que se produzissem hortícolas biológicas e se facilitasse a reintegração das reclusas na comunidade e no mercado de trabalho.
“Além de nos ajudar a nós, podemos ajudar quem está lá fora”, reconhece Natália, já depois de terem entregado uns quantos cabazes recheados com os frutos da primeira sementeira. Os primeiros legumes arrancados da terra foram entregues à Casa das Mães (o jardim-de-infância dentro da prisão de Tires que acolhe os filhos das reclusas até aos cinco anos) e à Casa da Criança (instituição que recebe os filhos das reclusas com mais de cinco anos). Parte dos legumes que estão a furar a terra vão ainda ter como destino famílias carenciadas do concelho e serão também vendidos ao público para ajudar a garantir a sustentabilidade financeira do projecto.
“Nós acordamos e pensamos que as pessoas vão comer o que nós estamos a plantar e acordamos com mais vontade de vir trabalhar”, atira Cátia Cruz, uma das hortelãs, que está em Tires há quase quatro anos.
É mais um “voto de confiança” nelas, reconhecem as próprias reclusas. Uma forma de se ocuparem e de ganharem novas competências. Para trabalharem na horta do Brejo, todas receberam formação. Ali trabalham mais livres, sem guarda.
“Isto significa bem a liberdade. Andam sozinhas, com uma vigilância menos apertada. Ganham o dinheirinho delas, o que dá muito jeito para fazer as compras delas cá dentro”, reconhece Susete Rocha, 58 anos, que ali é guarda há três décadas.
E "uma ferramenta muito importante para quando saírem encontrarem um trabalho", acredita Fátima Corte, directora do Estabelecimento Prisional de Tires. E poderá ser uma alavanca para conseguirem um regime aberto no exterior: "Irem trabalhar lá para fora sozinhas durante o dia, e depois voltar. É uma plataforma para a liberdade, para uma integração responsável", diz a directora.
A “burocracia” não pode ser impedimento
Até 1980, aqueles terrenos eram geridos pelas freiras da Congregação do Bom Pastor que o mantinham como um espaço auto-suficiente em termos de produção alimentar. Mas quando passou para a gestão dos serviços prisionais, acabou por deixar de ser cultivado. Quiseram recuperar uma tradição, já depois de terem criado uma horta mais pequena, que serve a própria prisão.
Depois dos primeiros frutos colhidos, falta ainda muito investimento, reconhece. A câmara de Cascais tem reservados para aquele terreno de 12 mil metros quadrados (10 mil para a hora e dois mil para o pomar) cerca de 100 mil euros para a construção de uma estufa, para o alargamento da área de cultivo e a instalação de um sistema de rega.
“É uma oportunidade de travar o desperdício, não só da terra, mas da vontade”, notou o autarca Carlos Carreiras. "Aqui diria que tiveram o primeiro acto de liberdade. O que estão a fazer é um acto de cidadania", vincou.
Nos últimos meses, “têm chovido pedidos” das reclusas para irem trabalhar para a horta do Brejo, diz Fátima Corte. Gabriela Rafael deixa-lhe um recado: Que a “burocracia” não seja um impedimento para dar oportunidades a estas mulheres. “Deviam apostar em mais mulheres e meter mais a trabalhar”.
“Ao longo do tempo, tentamos sempre subir mais um bocadinho para mostrar que somos capazes. Lidamos com pessoas de fora, o que é muito bom. Não é só por estarmos aqui, que não somos capazes”, atira Natália.
Há vida para lá daqueles muros, quer se entre, quer se saia deles. E quem, ali dentro, esteja a torcer pelo sucesso delas. "Umas vezes ralhamos com elas, outras vezes damos apoio, outras vezes elas não precisam de nós, outras vezes precisamos nós", diz Susete, enquanto se lhe transbordam os olhos de felicidade. "Então não hei-de ficar feliz? Eu nem sabia que uma beringela crescia assim em tão pouco tempo".