“Há um encantamento tecnocrata com a Economia Azul”

Álvaro Garrido, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra assina As pescas em Portugal, um dos últimos ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Hoje, “o parente pobre da cadeia de valor das pescas são os pescadores”, diz

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Adriano Miranda

O livro As pescas em Portugal, de Álvaro Garrido, conduz-nos pela história de um sector em crise permanente, incapaz de abastecer o país e de lidar com os choques externos. No ensaio, o investigador alerta também para a necessidade de se proteger a dimensão costeira das pescarias, sempre secundarizada em relação à pesca industrial e longínqua no passado, e com pouca visibilidade na actual Estratégia Nacional para o Mar.

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O livro As pescas em Portugal, de Álvaro Garrido, conduz-nos pela história de um sector em crise permanente, incapaz de abastecer o país e de lidar com os choques externos. No ensaio, o investigador alerta também para a necessidade de se proteger a dimensão costeira das pescarias, sempre secundarizada em relação à pesca industrial e longínqua no passado, e com pouca visibilidade na actual Estratégia Nacional para o Mar.

Numa das primeiras páginas do livro recorda uma obra de 1789, cujo título é “Memória sobre a decadência das pescarias”. Andamos há assim tanto tempo com as pescarias em decadência?
O tópico mais central, mas obsessivo, das pescas portuguesas e dos sábios que ela conheceu ao longo do tempo, que são muitos felizmente, é esse diagnóstico de crise permanente. E essa decadência das pescarias, formulada por um homem da Academia das Ciências de Lisboa, um memorialista como Constantino Botelho Lacerda Lobo, significava na época, como significou mais tarde mais ou menos da mesma forma, que aquilo que se pescava no reino não era suficiente para o abastecer. Portanto, a crise das pescarias portuguesas está muito relacionada com esta concepção e com a prática, quase dilemática, de uma pesca de abastecimento, que nunca chegou para as necessidades de um consumo de pescado muito alto, relativamente às próprias disponibilidades de recursos do mar português.

De onde nos vem essa apetência para comer o peixe que nem sequer tínhamos, em quantidade, na nossa costa?
Os factores de tradição cultural no consumo de pescado pesam imenso e, portanto, não há uma racionalidade eficiente nos padrões de consumo de peixe. Aliás, Portugal é um caso de estudo. Em regra, associa-se o desenvolvimento económico a uma redução gradual do consumo de pescado e uma menor dependência dessa fonte de proteína animal. E a história portuguesa económica e social revela exactamente o contrário: ou seja, à medida que historicamente o rendimento per capita subiu, também se verificou um aumento do consumo de pescado. E há dois factores de grande resiliência no consumo, nesta hipérbole do consumo de peixe que é muito característica da cultura portuguesa: a elevadíssima taxa de consumo de bacalhau salgado seco, de que Portugal é, e sempre foi desde que há registo, o principal consumidor à escala mundial; e, por outro lado, uma grande dependência também para abastecimento de matéria-prima da indústria conserveira do consumo de sardinha. Portanto, sardinha e o bacalhau configuram as pescas portuguesas, é essa a sua realidade cultural.

As pescas longínquas — como a do bacalhau, durante o Estado Novo — concentraram investimento e atenção política. Quando, como descreve no livro, somos basicamente um país de comunidades de pesca costeira.
Esse é o paradoxo-chave das pescas portuguesas. Imaginamos, escrutinamos, avaliamos a política de pescas, o acerto e desacerto das decisões políticas da CEE e da União Europeia muito em função do imaginário de grandeza, de uma frota nacional de navios, de toda aquela épica historicista da frota bacalhoeira nacional, por exemplo. Mas a realidade estrutural económica e social, e mesmo bio-económica, do ponto de vista dos recursos que habitam nas águas sob jurisdição portuguesa, dos números da frota, da população activa, traduzem historicamente uma importância muito grande, esmagadora, da chamada pesca costeira, realizada junto à costa, dentro do mar territorial, as 12 milhas náuticas. É a chamada pequena pesca, que já não é propriamente artesanal, como era. Tem uma importância social na coesão das comunidades, no abastecimento de pescado nos mercados locais, nas cadeias de valor formais e informais e na economia das pescas em geral. E olhamos muito para a dimensão soberana, épica historicista, quase ultramarinista das pescas, que está muito ligada sobretudo a essa tradição das pescas do bacalhau do Atlântico Norte, e da pescada no Atlântico Sul, que começámos nos séculos XV e XVI respectivamente. Isto pesa muito no imaginário e numa avaliação relativamente redutora que fazemos das pescas.

Essa visão também pesou na forma como Estado Novo, por exemplo, investiu e amparou a nossa única indústria de pesca propriamente dita?
As políticas de pescas do Estado Novo, que ainda hoje deixam uma herança pesada e que foram completamente organizadas debaixo da fórmula corporativa autoritária, liderada por Henrique Tenreiro, tinham uma aposta muito clara nas chamadas pescas longínquas industriais. A pequena pesca foi muito pouco valorizada. As comunidades eram controladas pelo Estado de forma repressiva e paternalista, mas o que interessava, de facto, era abastecer a nação, era um modelo de pesca de abastecimento que foi muito incentivado, através de uma política proteccionista do Estado e por meio da subvenção pública dos factores de produção, sobretudo do crédito à renovação das frotas, subsídio dos grandes armadores. O objectivo era substituir parcialmente importações, no bacalhau. A campanha do bacalhau, do ponto de vista político, foi um êxito. Portugal pescava 11% de bacalhau nos anos 30 e passou a pescar em média, nos anos 60, 60% a 65%. Mas isso foi possível num contexto político autoritário, proteccionista, e sem uma regulação externa, como aquela que surgiu com as mudanças de direito mar nos anos 70. Até então, pescava-se onde se quisesse, como se quisesse.

Esse período de mudanças no direito do mar, que levou à criação das zonas económicas exclusivas coincidiu em Portugal com o período pós-revolucionário e, praticamente, com o início do processo de adesão do país à CEE. Esse é o grande período de convulsão nas pescas em Portugal?
Nesse período à volta dos anos do 25 de Abril há uma crise petrolífera mundial que tem um impacto tremendo nas pescas industriais em geral. Dá-se a revolução do 25 de Abril e o desmantelamento da estrutura proteccionista das pescas que vinha do Estado Novo, que levou tempo a adaptar. Há uma libertação do trabalho com greves a bordo, reivindicações salariais e tudo isso, que foi muito importante, teve os seus efeitos desestabilizadores, naturalmente. E houve uma mudança a nível externo, que Portugal acompanhou no contexto revolucionário, subscrevendo os resultados da III Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que começara em 73, precisamente. A adopção, por Portugal, da zona económica exclusiva de 200 milhas náuticas e do mar territorial de 12 milhas, em 1977, é uma mudança geopolítica tremenda para as pescas portuguesas e para as políticas do mar. É uma mudança pouco conhecida em geral, que na verdade colocou grandes desafios ao aproveitamento na zona económica exclusiva, sobre a qual não se sabia nada, em 76/77, porque não estavam mapeados os recursos. Não havia um plano de fiscalização e de exploração operacional, não havia um aparelho institucional da investigação que foi criado a correr com o nascimento do INIP [Instituto Nacional de Investigação das Pescas], em 1977/78. Havia que fazer tudo, e foi tudo feito à pressa com poucos recursos. E poucos anos depois veio a adesão à comunidade económica europeia, com um quadro regulador externo tremendamente diferente do historicamente conhecido.

E fica-se com aquela ideia, que no livro é desmentida, de que passamos esse primeiro período da adesão à comunidade a desmantelar a frota.
De facto, o volume financeiro que foi alocado em Portugal a novas construções ou à modernização de embarcações foi superior ao direccionado para o abate de embarcações. Há que olhar para estes dados de uma forma menos maniqueísta do que em regra se coloca na sociedade portuguesa. Houve erros de política seguramente, o processo foi precipitado, foi muito abrupto. Boa parte das responsabilidades, penso que até estão do lado dos armadores e da forma rentista, pouco responsável, como os prémios de abate foram usados, mas houve muitas oportunidades concretizadas para novas construções.

Parente pobre da cadeia de valor

Então, o que é que falhou?
Os danos sociais do declínio da frota e do abate de embarcações foram superiores àquilo que se ganhou em modernização e reestruturação técnica. Neste, como noutros sectores, a reforma foi induzida do exterior, foi feita de maneira precipitada, não planeada e de acordo com alguns mecanismos relativamente perversos da própria Política Comum de Pescas, que nas primeiras fases estava demasiado obcecada com a linguagem da reconversão estrutural dos factores de produção. O que verificamos de positivo no comportamento da pesca portuguesa, nesse período subsequente à adesão à CEE, entre 1986 e 96, é um aumento da produtividade e de oportunidades de rendimento provavelmente mais interessantes para os pescadores e os armadores, acompanhadas por um impacto muito negativo nas comunidades, porque a população activa de pesca cai praticamente para metade em dez anos.

Aborda também outra questão que afecta sobretudo a pesca artesanal e a pequena pesca, que é a da venda em lota, na qual o sector se diz prejudicado. Essa foi uma questão que nunca foi tratada com coragem por governo nenhum.
Os mecanismos de mercado na pesca são muito complexos e o ponto central da cadeia de distribuição reside na chamada primeira venda, onde subsiste, embora, em menor escala, alguma fuga à lota, de pesca não declarada. Mas por muito que se diga que há economia informal, que os pescadores afinal ganham muito mais do que se pensa, e que há ali todo o processo de acumulação não visível, é verdade que o parente pobre da cadeia de valor das pescas são os pescadores, hoje.

No Norte do país, os armadores estão a recorrer a pescadores indonésios, por falta de mão-de-obra. E sabemos que os portugueses estão a alimentar a frota de Espanha, da França.
A tendência migratória dos pescadores, em busca de melhores salários, melhores rendimentos e melhores condições de trabalho, não é recente, mas aumentou em Portugal. E não há mão-de-obra suficiente em Portugal para compor as tripulações dos barcos de pesca. É uma contradição muito grave que está identificada, mas para a qual o Governo não parece querer oferecer resposta. Neste momento, e isto não é de agora, já tem uns anos, o processo de formação profissional das pescas está praticamente paralisado. Há problemas laborais graves nas pescas, e há um problema profundo de distorção da cadeia de valor, que eu não sei como se resolve, que é a concentração da distribuição dos hipermercados, com uma contracção forçada das margens de lucro, num segmento intermédio do negócio de produtos da pesca. É um problema grave.

Refere que houve quebra de importância do sector, no emprego e na produção, acompanhada de uma diminuição da rendibilidade política. Isso poderá também justificar alguma incapacidade e lentidão na busca de soluções?
Do ponto de vista político, as pescas perderam claramente centralidade. Já não nos lembramos de campanhas eleitorais nas quais os portos de pesca e os mercados de peixe fossem disputados avidamente. O porco no espeto substituiu a sardinha assada. E é verdade que nas políticas públicas para o mar, hoje, há uma secundarização — a meu ver errada e precipitada — das políticas de pescas, da importância social e económica que as pescas tem nas comunidades costeiras em Portugal. Ainda há pouco tempo saiu um estudo do Banco de Portugal que mostra que nas indústrias do mar em Portugal o que mais pesa ainda é a economia das pescas, a economia portuária. Portanto, esta dita “velha” economia do mar precisa de ser mais acarinhada pelas políticas públicas, relevada num plano de desenvolvimento sustentável, porque a nova economia do mar ainda não tem uma expressão económica e social relevante.

Escreve que a nossa estratégia nacional para o mar aposta muito na chamada economia azul e pouco neste sector tradicional.
Sim, é verdade. Há um encantamento tecnocrata com a economia azul e com as possibilidades extraordinárias que a sua cadeia de valor alegadamente criará. Não tenho dúvidas de que o futuro reside aí. Mas é necessário um equilíbrio entre aquilo que existe do ponto de vista económico e social, e que não deixará de existir no futuro. As pescas não vão acabar certamente, embora tenham uma expectativa de estabilidade do ponto de vista da sua expressão social e económica, nomeadamente em termos de população activa. Mas é necessário olhar para o papel das pescas enquanto elemento central na coesão social das comunidades costeiras, enquanto arquivos de cultura do mar, de saberes acumulados.

Mas perante o cenário de crise permanente, histórica e actual, como descreve — que futuro antevê para as pescas?
Portugal não é um “país de pescadores” — nem de heróis nem de santos, tão pouco —, mas as comunidades marítimas terão futuro se souberem preservar a pesca enquanto actividade sustentável. Não é possível admitir cenários expansionistas nem regressos ao passado, porque a pesca é uma actividade altamente regulada no plano multilateral e porque as evidências de escassez dos recursos são uma realidade científica e experimentada no próprio quotidiano dos pescadores. Importa, porém, pescar melhor e valorizar mais os produtos da pesca. A pesca ilegal, não declarada e o próprio desperdício dos consumidores precisam de mais regulação e fiscalização. Há que cuidar, também, da investigação pública aplicada às pescas, cujo dispositivo se encontra gravemente diminuído e da formação profissional dos pescadores, que conheceu retrocessos preocupantes nos últimos anos.