Bruxelas põe em xeque controlo fiscal de Portugal à zona franca
Atribuição de benefícios a empresas internacionais cujo lucro poderá não ter sido gerado na Madeira ou que não criaram postos de trabalho na região leva Bruxelas a tomar decisão inédita. Esclarecimentos do Governo não evitaram investigação.
A Comissão Europeia já não esconde as dúvidas que tem em relação às condições em que algumas empresas internacionais da zona franca da Madeira estão a beneficiar de isenções fiscais por estarem instaladas no centro de negócios. E ontem passou das palavras aos actos ao anunciar com estrondo a abertura de uma “investigação aprofundada” onde se interroga se Portugal tem assegurado o controlo necessário para garantir que as empresas cumpriram os requisitos para terem tido redução de impostos ao abrigo das regras aprovadas no passado pelo próprio executivo comunitário.
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A Comissão Europeia já não esconde as dúvidas que tem em relação às condições em que algumas empresas internacionais da zona franca da Madeira estão a beneficiar de isenções fiscais por estarem instaladas no centro de negócios. E ontem passou das palavras aos actos ao anunciar com estrondo a abertura de uma “investigação aprofundada” onde se interroga se Portugal tem assegurado o controlo necessário para garantir que as empresas cumpriram os requisitos para terem tido redução de impostos ao abrigo das regras aprovadas no passado pelo próprio executivo comunitário.
O Governo português dificilmente poderá reclamar surpresa em relação à investigação de Bruxelas. O PÚBLICO sabe que a Comissão Juncker começou a avaliar o funcionamento do regime especial madeirense em 2015, data a partir da qual se iniciaram os contactos entre a equipa especializada em ajudas regionais da Direcção-geral da Concorrência e as autoridades portuguesas.
O diálogo tem sido regular desde então, quer por escrito, quer em reuniões onde as duas partes têm dado a conhecer os seus argumentos. Mas a troca de argumentos não foi suficiente para evitar a abertura deste procedimento formal. O facto de Bruxelas ter dado um passo neste sentido significa que tem dúvidas concretas que quer ver esclarecidas e que não o ficaram nos contactos anteriores. Uma fonte europeia com conhecimento do processo disse que a decisão de sexta-feira “não é uma novidade absoluta para o Governo, que há muito tempo sabe das preocupações de Bruxelas”.
Segundo o PÚBLICO apurou, os casos suspeitos têm a ver com a atribuição de benefícios a empresas internacionais que declaram na Madeira actividades económicas que não são realizadas na ilha. Em relação à criação de empregos, foram detectados casos em que um único trabalhador foi contratado para ocupar vários postos de trabalho, todos contabilizados para efeitos de benefício fiscal, e ainda casos em que empregos declarados na Madeira estavam na realidade a ser executados noutras geografias.
Bruxelas também quer analisar vários contratos de trabalho a termo (muito reduzido) que foram assinados na Madeira. Ao PÚBLICO, o Ministério das Finanças garantia em Maio que havia 2838 “postos de trabalho directos” nas empresas em actividade na zona franca no final de 2016, mas a outros pedidos de esclarecimento deixou de dar resposta entretanto.
Dúvidas sobre lucros
Bruxelas teme que, ao contrário do que se pretende com este estatuto especial de compensação pelas desvantagens específicas das regiões ultraperiféricas, a zona franca esteja a criar um buraco para a evasão fiscal que está a ser aproveitado pelas empresas. Numa nota que tornou pública na sexta-feira, Bruxelas assume ter dúvidas sobre “se as autoridades portuguesas respeitaram algumas das condições de base” que levaram a própria Comissão a considerar em 2007 e 2013 que o regime especial cumpria as regras.
Segundo esclareceu um porta-voz da Comissão Europeia aos jornalistas portugueses em Bruxelas, o processo decorre das “preocupações” do executivo de Jean-Claude Juncker sobre a implementação do regime “nomeadamente o facto de o lucro de algumas empresas não ser realizado na Madeira, e também no facto de não estarem a gerar ou a manter os empregos na Madeira que deveriam ter” para poderem beneficiar das isenções fiscais.
A decisão é pilotada pela comissária responsável pela política da concorrência, Margrethe Vestager e segue-se a um outro processo de infracção desencadeado há já um ano por causa do ajuste directo que permitiu entregar de novo a gestão da zona franca à Sociedade de Desenvolvimento da Madeira (SDM), controlada pelo grupo Pestana e participada pela própria Região Autónoma.
A nova decisão promete agitar as águas numa altura em que a Região Autónoma se prepara eleições para a assembleia regional em Setembro ou Outubro de 2019, deixando sob pressão tanto o Governo regional do social-democrata Miguel Albuquerque como o executivo central do socialista António Costa.
Ao longo dos anos, o regime fiscal foi tendo várias versões. De 1987 e 2014, a Comissão aprovou-os e houve monitorizações, mas a responsabilidade pela fiscalização tributária cabe a Portugal. O controlo fiscal das empresas da zona franca é feito desde há alguns anos quase exclusivamente pela administração tributária regional (a AT-RAM). À Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) cabe fazê-lo relativamente às grandes empresas, as que pelos critérios definidos na lei são acompanhadas pela Unidade dos Grandes Contribuintes, o que no caso da Madeira significa um grupo restrito de sociedades. Nos últimos 15 anos, a própria actividade do fisco relativamente à zona franca da Madeira só foi alvo de duas auditorias da Inspecção-geral de Finanças (IGF).
As dúvidas agora levantadas pela da Comissão Europeia de viva voz deixam em xeque o controlo fiscal feito pelo Estado português sobre a aplicação dos benefícios. Em Lisboa, ainda há poucos meses o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, mostrava-se convencido com o modelo de fiscalização, quando em entrevista ao PÚBLICO afirmou: “Aquilo que temos de fazer é viver com o sistema que temos”.
Numa primeira reacção ao comunicado de Bruxelas, o Governo de António Costa fez algumas observações: reforçou o apoio à existência de um regime especial; referiu que a zona franca foi sendo sujeita desde os anos 1980 “ao escrutínio das autoridades europeias” através de averiguações e avaliações; afirmou que, em articulação com o Governo regional, “sempre prestou todos os esclarecimentos” pedidos; mostrou-se disponível “para esclarecer todas as dúvidas que a Comissão possa ainda ter”; e reforçou que o Governo e “outros interessados” poderão pronunciar-se entretanto (o que inclui as empresas ali instaladas).
Troca de palavras
A decisão motivou ontem reacções distintas. Bruxelas tem recebido nos últimos anos da eurodeputada Ana Gomes alertas sobre algumas empresas ali instaladas e informação sobre a aplicação do regime. Uma posição criticada pelo presidente do Governo regional, que acusa a eurodeputada socialista de “prejudicar deliberadamente” a economia madeirense.
Ao PÚBLICO, Ana Gomes considera que a decisão do executivo comunitário lhe vem dar razão, deixando o Estado português mal na fotografia e agrilhoado para “exigir o fim da selva fiscal na Europa”. A sua posição, diz, não é contra o povo da Madeira. “Ao contrário do que sustentam, isto [o regime especial] não beneficia em nada o conjunto dos cidadãos da Madeira, mas meia dúzia de pessoas que gerem os interesses ligados à zona franca e os advogados de negócios esquisitos”.
Ainda este ano a eurodeputada fez chegar a Bruxelas uma lista de sociedades internacionais que estão na zona franca. Por isso interroga-se: “A que título empresas da Sonangol têm benefícios fiscais? A que título as empresas da senhora dona Isabel dos Santos, como a Niara Holdings, têm benefícios? A que título grupos mafiosos ligados às petrolíferas mexicanas têm benefícios? Para os cidadãos temos sobre carregamentos fiscais em matéria de fiscalidade.”
Há dois desfechos possíveis nos casos dos processos de infracção: Bruxelas pode decidir que um regime foi correctamente implementado ou, em caso contrário, decidir que o auxílio fiscal atribuído seja recuperado pelo Estado.