O regresso dos anos 1920 e 1930? O radicalismo em Itália e na União Europeia
O que falha na actual União Europeia para que os radicalismos voltem a tornar-se atractivos? Existem circunstâncias que não permitem falar numa mera réplica dos anos 1920 e 1930.
1. Pode a União Europeia absorver políticos como Matteo Salvini, o líder da Liga e actual Ministro do Interior de Itália, a antítese de um político europeísta no sentido usualmente dado o termo? Para Wolfgang Münchau do Financial Times (ver “Fearless Matteo Salvini’s threat to the EU establishment” in FT, 1/7/2018), a União Europeia corre "o risco de se tornar a República de Weimar dos nossos tempos — uma construção adequada apenas para um clima político moderado”. Exagero retórico, ou risco político sério? Indubitavelmente, Matteo Salvini está hoje no centro da contestação à União Europeia, pelo menos na forma como está instituída e actua em certas áreas políticas. Nas suas próprias palavras, já uniu a Itália e propõe-se agora unir também a Europa na sua causa: defender os povos europeus e as suas fronteiras. O objectivo é formar uma “Liga das Ligas" reunindo todos os partidos e movimentos livres e soberanos em torno de uma “Europa que protege os seus cidadãos”. Nas próximas eleições para o Parlamento Europeu em 2019 será uma força política alternativa aos que sustentam o actual absurdo de uma “Europa sem fronteiras”, invadida por vagas migratórias. (Ver “Pontida, bagno di folla per Salvini. "Governeremo per i prossimi 30 anni. Farò la Lega delle Leghe” in La Repubblica, 1/07/2018).
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1. Pode a União Europeia absorver políticos como Matteo Salvini, o líder da Liga e actual Ministro do Interior de Itália, a antítese de um político europeísta no sentido usualmente dado o termo? Para Wolfgang Münchau do Financial Times (ver “Fearless Matteo Salvini’s threat to the EU establishment” in FT, 1/7/2018), a União Europeia corre "o risco de se tornar a República de Weimar dos nossos tempos — uma construção adequada apenas para um clima político moderado”. Exagero retórico, ou risco político sério? Indubitavelmente, Matteo Salvini está hoje no centro da contestação à União Europeia, pelo menos na forma como está instituída e actua em certas áreas políticas. Nas suas próprias palavras, já uniu a Itália e propõe-se agora unir também a Europa na sua causa: defender os povos europeus e as suas fronteiras. O objectivo é formar uma “Liga das Ligas" reunindo todos os partidos e movimentos livres e soberanos em torno de uma “Europa que protege os seus cidadãos”. Nas próximas eleições para o Parlamento Europeu em 2019 será uma força política alternativa aos que sustentam o actual absurdo de uma “Europa sem fronteiras”, invadida por vagas migratórias. (Ver “Pontida, bagno di folla per Salvini. "Governeremo per i prossimi 30 anni. Farò la Lega delle Leghe” in La Repubblica, 1/07/2018).
2. Quem é Matteo Salvini? Usualmente é rotulado como um político populista de (extrema) direita, com tendências xenófobas. Poucos estariam à espera que tivesse um percurso anterior em movimentos e partidos de esquerda radical. Inicialmente foi um activista de causas sociais e políticas desse quadrante ideológico, que lembram certos sectores do Podemos (Espanha), ou do Syriza (Grécia). Matteo Salvini passou pelo Leoncavallo, um centro social de autogestão situado em Milão. (Ver “Leoncavallo (centro sociale)” in Wikipedia). Essa fase embrionária foi, provavelmente, determinante para moldar a sua personalidade na acção e combate político. Na altura, como já notado, as suas causas eram típicas dos movimentos sociais e políticos de contestação da esquerda radical. (Ver Luigi Mastrodonato “L’Eterna Transizione Politica de Matteo Salvini” in The Vision, 5/02/2018). Mas o percurso de Matteo Salvini está cheio de reviravoltas e de transformações políticas surpreendentes. Passou pelos comunistas da Padânia e depois transitou para a Liga do Norte fundada por Umberto Bossi. Lutou pela secessão da Padânia (o Norte de Itália), constituída pelo Vale de Aosta, Piemonte, Ligúria, Lombardia, Trentino-Alto Adige, Véneto, Friuli-Venezia Giulia e Emília-Romana. Agora afirma-se como um patriota: os “italianos primeiro” é o seu slogan. (Ver “Tutte le giravolte di Salvini, il militante padano che si e` scoperto italiano” in Linkiesta, 1/03/2018, https://www.linkiesta.it/it/article/2018/03/01/tutte-le-giravolte-di-salvini-il-militante-padano-che-si-e-scoperto-it/37287/). Este percurso ziguezagueante dá origem a títulos irónicos na imprensa italiana e a discussões animadas sobre as suas metamorfoses ideológicas e catalogação política. (Ver “Salvini fascista. No, comunista. Gli piace il Duce. No, il Che. E lui gode” in Secolo d’ Italia, 21/04/2015).
3. Matteo Salvini não é um caso isolado de metamorfoses ideológicas. Na história das ideias políticas — e dos percursos daqueles que ocupam o poder — não é invulgar depararmo-nos com reviravoltas e mudanças de campo. Acontece isso quando se olha para o fascismo italiano dos anos 1920 e 1930, especialmente para a trajectória do seu fundador, Benito Mussolini. Nos seus primórdios, antes da I Guerra Mundial, foi um marxista heterodoxo, membro do Partido Socialista e director do jornal Avanti. (Ver "Biografia di Mussolini socialista rivoluzionario" in L’Arena, 25/10/2015). Essa trajectória não foi um aspecto irrelevante. Provavelmente explica certas características mais tarde incorporadas/transformadas pelo fascismo, quando ganhou traços ideológicos distintivos: a oposição à democracia liberal-parlamentar, o partido único e a ideia de uma vanguarda para guiar as massas. No entanto, importa não cair num simplismo distorcedor. Os contornos do fascismo, enquanto ideologia radical e totalitária, vão além desse (re)apropriar de certos aspectos de um marxismo heterodoxo. Contém influências decisivas do movimento futurista de Filippo Marinetti, de Gabriele D'Annunzio e de Giovanni Gentile, entre outros. Mas será que hoje, quase um século depois, estamos a assistir a um regresso do fascismo dos anos 1920 e 1930 na Itália e na União Europeia? (Ver Rui Tavares, "Tarefas urgentes para antifascistas", in Público, 20/06/2018).
4. Pensando na época politicamente confusa em que vivemos há um texto cheio de fina ironia de Fernando Pessoa — “Profecia italiana” (1935) —, do qual não resisto a transcrever um excerto. Nunca chegou a ser publicado pela imprensa portuguesa da época, ao que tudo indica devido à censura. O contexto era o da invasão da Abissínia (actual Etiópia) pela Itália de Mussolini, em Outubro de 1935. Nele são reproduzidas, e comentadas, duras considerações sobre o nacionalismo e o militarismo feitas no jornal socialista Avanti. Ironicamente, são da autoria do próprio Mussolini na sua já referida fase de socialista revolucionário. (Ver "Mussolini direttore dell'Avanti!" in Il Giornale d’Italia, 21/08/2015). Eis o excerto: “No jornal italiano Avanti, de 21 de Janeiro de 1913, vem inserto um artigo em que se lê o seguinte, que peço ao leitor que, palavra a palavra, acompanhe e medite: ‘Estamos na presença de uma Itália nacionalista [...] que se propõe fazer da espada a sua lei, e do exército a escola da nação. Previmos esta perversão moral: não nos surpreende. Erram porém os que pensam que esta preponderância do militarismo é sinal de força. As nações fortes não têm que descer à espécie de carnaval estúpido a que os italianos hoje estão entregues: as nações fortes têm o sentido das proporções. A Itália nacionalista e militarista mostra que não tem esse sentido.’ Ignoro a que propósito imediato se escreveram essas linhas. Ignoro e não importa. São elas o mais justo, o mais claro e o mais cruel comentário de quanto hoje, vinte e dois anos depois, se está passando na Itália, ou, melhor, com a Itália. Ao jornalista casual coube um lampejo de verdadeiro espírito profético. Felizmente o artigo é assinado, de sorte que não falta o nome, nem portanto a honra, ao iluminado dessa súbita inspiração. O autor do artigo do Avanti é o sr. Benito Mussolini.” (Ver José Barreto, “Fernando Pessoa e a invasa~o da Abissi´nia pela Ita´lia fascista” in Análise Social, vol. XLIV, 2009,pp. 693-718).
5. A história mostra que são circunstâncias políticas anormais, de acentuada turbulência social, económica e política, que costumam permitir a ascensão dos radicalismos latentes na sociedade. Tendem a ganhar adeptos e a chegar ao poder, seja pela via eleitoral, seja pela violência. Na Itália fascista de Benito Mussolini, a Milícia Voluntária para a Segurança Nacional, vulgarmente conhecida como "camisas negras”, fazia esse papel de coacção. Forças sociais e políticas que contestam o sistema instituído — a democracia representativa parlamentar e a lógica de rotatividade entre o (centro) direita e o (centro) esquerda — existem em qualquer sociedade pluralista. Em todas as épocas históricas, mesmo nas mais pacíficas e de bem-estar, há radicais e potenciais líderes de movimentos populistas, seja na lógica da (extrema) direita ou da (extrema) esquerda. Como já notado, em circunstâncias normais e quando as instituições representativas democráticas fornecem também bem-estar, os radicalismos tendem a atrair apenas sectores muito minoritários da população. Mas na Europa dos anos 1920 e 1930, como resultado da I Guerra Mundial, do falhanço da paz de Versalhes e da Grande Depressão, essas circunstâncias emergiram abrindo caminho a um nacionalismo autoritário/totalitário e expansionista. A ambição da Alemanha sobre os Sudetas (Checoslováquia), sobre o corredor polaco/corredor de Dantzig (Polónia), ou da Itália sobre Fiume (Jugoslávia/Croácia) e a Albânia, não deixam dúvidas quanto a isso. Para além da animosidade contra a democracia parlamentar e o capitalismo liberal pelo seu falhanço em gerar bem-estar, o que movia ambas era uma expansão revisionista das fronteiras políticas.
6. O que falha na actual União Europeia para que os radicalismos voltem a tornar-se atractivos? Apesar das similitudes já notadas, existem circunstâncias diferentes de relevo que não permitem falar numa mera réplica dos anos 1920 e 1930. Agora não foi a guerra na Europa que criou o terreno para os radicalismos e o apelo nacionalista. Os europeus também não estão em expansão demográfica e territorial como nessa época, mas sim em retrocesso no mundo. A União Europeia, herdeira das Comunidades criadas nos anos 1950 para construir uma “paz perpétua” entre os povos europeus — precisamente devido às tragédias dos nacionalismos da primeira metade do século XX — deu passos em falso. Nos últimos anos, frustrou as expectativas de muitos europeus quanto a um crescente e continuado bem-estar. Para além das actuais circunstâncias externas desfavoráveis, há uma construção deficiente de uma zona monetária integrada (a Zona Euro) e de um espaço de livre circulação (Espaço Schengen). Assim, quando surgiram choques externos de grande intensidade — económicos/monetários, ou devido a fluxos em massa de migrantes/refugiados, como ocorreu nos últimos anos —, abriu brechas profundas. Nessas áreas, as transferências de soberania dos Estados-membros para a União não deram lugar a mecanismos eficazes de gestão, nem a uma solidariedade genuína. Em Itália, essas duas falhas da construção europeia foram sentidas com particular intensidade. Face à ineficácia de uma resposta europeia em solucionar problemas nessas áreas — mostrando, claramente, à generalidade dos cidadãos, que estão melhor com uma solução europeia do que com uma solução nacional —, emergiu um nacionalismo populista em vários Estados. Matteo Salvini é uma versão pós-moderna dos radicais dos anos 1920 1930 que só chegou ao poder devido a uma Itália e União Europeia disfuncionais. Utopias europeístas nada resolvem. Reverter a vaga nacionalista e populista implica demonstrar, na prática, que mais Europa é igual a mais bem-estar. Fora disso, o apelo nacionalista vai continuar.