Da colónia penal ao precipício conjugal no Festival de Almada

António Pires e Pedro Jordão levam à cena respectivamente no Teatro do Bairro e no Teatro da Politécnica, em Lisboa, dois textos que dão o tom para a representação portuguesa no Festival de Almada.

Foto
Colónia Penal, de Jean Genet, na encenação de António Pires MARIA ANTUNES

Durante três décadas, Patti Smith terá guardado dentro de uma caixa de fósforos três pedras recolhidas na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa – que albergou até 1946 uma colónia penal para onde Jean Genet sempre quis ser enviado. Conseguiu, finalmente, oferecê-las a Genet em 2013, enterrando-as junto à campa do escritor e dramaturgo francês em Larache, Marrocos, à boleia de um concerto no país. Documentado no filme Three Stones for Jean Genet, de Frieder Schlaich, o episódio passa em repeat nas televisões do Teatro do Bairro, como que dando as boas-vindas ao público que se deslocar até 22 de Julho a esta sala lisboeta para assistir a Colónia Penal, texto inacabado pelo qual o encenador António Pires se apaixonou quando o actor Luís Lima Barreto lhe passou para as mãos a tradução que assinou com Fátima Ferreira.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Durante três décadas, Patti Smith terá guardado dentro de uma caixa de fósforos três pedras recolhidas na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa – que albergou até 1946 uma colónia penal para onde Jean Genet sempre quis ser enviado. Conseguiu, finalmente, oferecê-las a Genet em 2013, enterrando-as junto à campa do escritor e dramaturgo francês em Larache, Marrocos, à boleia de um concerto no país. Documentado no filme Three Stones for Jean Genet, de Frieder Schlaich, o episódio passa em repeat nas televisões do Teatro do Bairro, como que dando as boas-vindas ao público que se deslocar até 22 de Julho a esta sala lisboeta para assistir a Colónia Penal, texto inacabado pelo qual o encenador António Pires se apaixonou quando o actor Luís Lima Barreto lhe passou para as mãos a tradução que assinou com Fátima Ferreira.

“Fiquei logo apanhadinho”, confessa ao PÚBLICO. “Lembrou-me muitas outras obras do Genet e senti-me atraído por este lado inacabado.” Apesar de trabalhada e tantas vezes reescrita entre 1942 e 1964, a peça manteve-se sempre como uma sucessão de pequenos quadros, sem uma lógica narrativa evidente, o que permitiu ao encenador dispor as cenas em função da sua leitura pessoal do texto. “A narrativa que existe é sugerida pela forma como organizei os quadros”, confirma.

Seduzido por uma linguagem teatral que se acerca muito de um tom poético, Pires salienta que, apesar de Colónia Penal se basear nas experiências prisionais do próprio Genet, a peça nunca se assume como “uma imitação da vida ou tenta sequer pôr em cena a colónia penal como era ou poderia ser”. Daí que os diversos quadros se encadeiem sem dificuldade, de acordo com um movimento que se diria coreográfico, e que a construção de cada cena obedeça a um rigor herdado da pintura. Um rigor que Pires reconhece na “luz contrastada” com que Rui Seabra desenha os dois espaços em que a peça decorre – de um lado, um deserto carregado de luz; do outro, uma zona de sombra permanente.

É um contraste, na verdade, que Jean Genet polvilha por todo o texto, e que toma mesmo caminhos quase de vaudeville na comicidade do quadro final. Pires mal acreditava que estava diante de um texto de Genet quando leu pela primeira vez aquelas palavras, nelas intuindo “um olhar crítico sobre ele próprio, sobre o que acabámos de ver, carregado de humor”. E porque a liberdade da peça é quase total, em vez do telão com cabeças em que Genet previa figurar as vítimas da colónia, Pires deitou a mão a João Botelho e delegou no realizador a filmagem dessas visitas de personagens exteriores ao palco, voltando a contaminar o seu teatro com as imagens do cinema.

Uma peça de exactidão

Colónia Penal é apenas uma das produções nacionais com que se faz o arranque deste 35.º Festival de Almada – juntam-se-lhe as reposições de Bonecos de Luz, de Romeu Correia, numa encenação de Rodrigo Francisco, a leitura de Nuno M. Cardoso para Lulu, de Franz Wedekind, e a estreia de Pedro Jordão enquanto encenador com Nada de Mim, texto de Arne Lygre, em cena na Escola da Politécnica, em Lisboa, até 21 de Julho.

Foto
Nada de Mim, de Arne Lygre, encenação de Pedro Jordão Jorge Gonçalves

Director de produção dos Artistas Unidos, Pedro Jordão reclama pela primeira vez o lugar de encenador em resposta a uma vontade muito concreta de passar à cena o texto de Lygre. “Esta peça vive na contradição de ser muito abstracta formalmente e muito ancorada no quotidiano”, resume. Em palco, temos um casal (Carla Bolito e Pedro Caeiro) que dá início à sua vida conjugal, mas cujo presente – e até a sua projecção futura – se vê repetidas vezes assaltado pelo passado. “A vida destas personagens é constantemente sabotada por uma sobreposição dos tempos. O que nos lembra a velha questão, tantas vezes esquecida, de que o passado está sempre a mudar. Não apenas no modo como se incorpora no nosso presente, mas também no nosso olhar sobre ele”, diz Jordão.

Os dois são, por isso, assombrados por figuras do passado, o que faz de Nada de Mim uma peça fragmentada, que se desenrola por blocos, e em que as personagens – “às vezes mais vozes do que corpos inteiros”, descreve o encenador – acabam por ter uma existência sobretudo emocional. Não são tão portadoras de histórias de vida quanto o são de atmosferas emocionais, quase diáfanas, impossíveis de “agarrar”. Talvez por isso, arrisca o encenador, Arne Lygre opta por nunca as nomear, num texto que dá apenas a informação indispensável para que os dois se rodeiem de relações passadas e se eternizem num ponto de absoluta fragilidade, junto ao precipício.

“E não há nada nesta peça e no texto que seja supérfluo”, considera Pedro Jordão. “Não há nenhuma acção nem nenhuma palavra a mais ou a menos. É de uma enorme exactidão.” E a exactidão, confessa este estreante encenador formado em arquitectura, é algo que o comove imenso.