Grande literatura, como se nada fosse
Trânsito, segundo volume da trilogia iniciada com Contraluz: é tremenda capacidade de Rachel Cusk escrever sobre a banalidade fazendo disso grande literatura. Como se nada fosse.
No segundo romance da trilogia iniciada com Contraluz (Quetzal, 2017), a britânica Rachel Cusk (1967) põe a protagonista numa espécie de erosão da individualidade. Quem é Faye depois do divórcio, da decisão de mudar do campo para Londres e de, por limitações de dinheiro, decidir comprar uma casa má num lugar bom, em vez do que lhe aconselhavam os promotores imobiliários: ceder um pouco na localização e ter mais metros quadrados de boa luz para escrever? Faye — sabe quem leu o romance anterior de Cusk — é uma escritora, mãe de dois filhos, às voltas com o colapso pessoal. Falhou no que lhe ensinaram ser as fundações da vida, entre elas o casamento, a maternidade, uma profissão estável e uma ideia de progresso associada a este conjunto.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
No segundo romance da trilogia iniciada com Contraluz (Quetzal, 2017), a britânica Rachel Cusk (1967) põe a protagonista numa espécie de erosão da individualidade. Quem é Faye depois do divórcio, da decisão de mudar do campo para Londres e de, por limitações de dinheiro, decidir comprar uma casa má num lugar bom, em vez do que lhe aconselhavam os promotores imobiliários: ceder um pouco na localização e ter mais metros quadrados de boa luz para escrever? Faye — sabe quem leu o romance anterior de Cusk — é uma escritora, mãe de dois filhos, às voltas com o colapso pessoal. Falhou no que lhe ensinaram ser as fundações da vida, entre elas o casamento, a maternidade, uma profissão estável e uma ideia de progresso associada a este conjunto.
Agora quase tudo ruiu, incluindo a ideia de si mesma. Faye fracassou como outros fracassam. “Ao fracassar dera origem a uma perda, e a perda era o limiar da liberdade: um limiar desconfortável e incómodo...”, lê-se no início. Eis o limiar de Faye, mulher em mudança, com um “importante trânsito no seu horizonte”, como lhe disse, por email, uma astróloga que achou que a conhecia.
A intenção da autora, e a percepção do leitor, é a de apanhar o livro em curso. Ou seja, a vida de Faye está a decorrer e nada sabemos do que foi antes da primeira página nem do que será depois da última. Nisso, Trânsito é como Contraluz, desafiador da ideia vitoriana de romance com um enredo definido, história com princípio meio e fim. Questiona ao mesmo tempo que desconstrói a noção clássica associada ao romance: uma entidade com um conhecimento total de si própria, um deus que manipula e sabe tudo das suas personagens. Em Trânsito não há um narrador que sabe tudo e o enredo tenta aproximar-se da falta de enredo das vidas normais, tentando com isso uma maior intimidade com o que se pode chamar de sentido do real.
E nessa procura de sentido do real há um paralelismo entre a fase da vida de Faye e o modo como Cusk constrói a sua ideia de romance. Num caso como no outro está presente um conceito de verdade. Por um lado, quem é Faye, de facto? Por outro, como é que a ficção se pode aproximar da concepção humana de real, rejeitando a tal divindade que parece ter-lhe sido atribuída como intrínseca desde a génese?
Faye vive. Cruza-se com pessoas, conversa com elas, toma decisões, faz escolhas sempre com grande angústia, mas nenhum destes aspectos — sempre narrados com grande precisão e elegância estilística — será necessariamente decisivo no livro. Estão lá porque fazem parte do quotidiano e de um modo de ser. Ela compra uma casa em péssimas condições num bairro onde muitos anos antes viveu com Gerard, um ex-namorado que abandonou por outro homem, sem qualquer remorso ou solidariedade para com o sofrimento dele. Os dois encontram-se. Ele sem qualquer sinal de mudança na sua vida, além da filha que está a deixar na escola; ela regressada de uma existência que ele adivinha ter sido agitada e bem sucedida, pelo menos profissionalmente. Um e outro conversam e dos diálogos parte-se para uma profunda interioridade. E é nesse íntimo, silencioso mas conflituante no sentido em que alguém se confronta consigo mesmo, que este livro parece passar-se.
Depois da conversa com Gerard, Faye recolhe-se com os seus pensamentos e vem-lhe a memória de um passeio à noite por uma rua deserta dessa cidade a que voltou. “Conseguia-se ouvir à distância o ténue zumbido da cidade, de maneira que o silêncio que reinava à minha volta parecia com que feito pela mão do homem. Esta sensação, do próprio ar a ser construído, era para mim a essência da civilização. Se ele queria saber como é que eu me sentia por ter voltado para aqui, a sensação que me dominava era a de alívio.”
Isso apesar dos problemas com o casal de vizinhos na cave do novo apartamento a necessitar de obras profundas. Foi uma escolha sua e condiciona todo o seu momento presente. Ninguém a preparara para aquilo. Rejeitou os conselhos do empreiteiro de pôr imediatamente essa casa à venda e sair dali. Ficou. E é nessa precariedade de mudança que o livro ocorre. Os filhos estão com o ex-marido e ela vive entre o pó e os impropérios da vizinha enquanto observa a aparente harmonia de quem mora para lá do muro nas traseiras. Dá aulas de escrita criativa, vai a festivais literários onde se fala de motivações literárias ou de como controlar a linguagem pode ser um meio de controlar raiva ou vergonha; e pede conselhos ao cabeleireiro sobre a cor para tapar os brancos e ele diz-lhe que a cor não engana ninguém, “só torna evidente que você tem alguma coisa a esconder”, por isso mais vale assumir o artifício, nada de cores que simulem a normalidade. Faz-lhe, então, a pergunta temível: “O que há de tão terrível em mostrar-se como é?” Talvez o medo de deixar de ser desejado que aflige quase toda a gente, responde-lhe ela, em síntese.
Sempre a vida normal. Há conversas com os trabalhadores da obra, com uma rapariga que quer começar a escrever o seu primeiro livro, com um grupo de amigos que eles visita numa aldeia nos arredores de Londres. E em cada conversa há uma história porque não há nada de mais humano do que esse acto de alguém contar o que se passa consigo mesmo. Ao escritor cabe montar um puzzle e Cusk escolhe fazê-lo sem artifícios, ou aparentemente sem artifícios. Esconde as costuras ao revelá-las de modo tão iluminado. É tudo de uma nudez requintada e desarmante. Um encontro sucede a outro sem ter de haver um cruzamento entre eles somente porque a narrativa pede ou possa estar mesmo a pedir. Aqui nunca se sente que a narrativa pede o que quer que seja. Este é também um romance sobre a escrita do romance. Um livro inconformado no qual o leitor tem de entrar com a disponibilidade de quem escuta uma história, partilha uma reflexão e com isso é estimulado a fabricar a sua própria ideia de si, do mundo, de quem é nessa erosão de identidade ou individualidade que qualquer grande mudança acarreta. E sentindo em tudo uma violência latente, uma crueldade prestes a magoar. É a tremenda capacidade de Rachel Cusk escrever sobre a banalidade fazendo disso grande literatura. Como se nada fosse.