Forjaz de Sampaio, um homem e dois mundos
Dois livros de Albino Forjaz de Sampaio agora reeditados ganham em ser lidos de uma só vez, sequencialmente e em paralelo, porque revelam duas facetas do escritor que são também facetas aplicáveis à existência humana.
Suicídios, há-os de toda a espécie. Políticos, filosóficos, jornalísticos, poéticos, metafóricos, reais de carne e sangue. Ainda há poucos dias, num concerto memorável em Lisboa, o britânico Ozzy Osbourne (voz dos Black Sabbath, que antes dele disseram “adeus” definitivo aos palcos em 2017) cantou Suicide solution, um vórtice de destruição pelo álcool com o suicídio como “única saída”. Um sentimento real? Pelo contrário. No momento em que o gravou pela primeira vez, em 1980, no disco Blizzard of Ozz, Ozzy estava em maré de renascimento, no início de uma carreira a solo após ter sido despedido da banda (onde tinham receio de que, a continuar a afogar-se em álcool e drogas, acabasse por matar-se) e a canção, se tinha algo de autobiográfico, podia ser ouvida mais como remoque irónico. Azar: o jovem guitarrista Randy Rhoads, com quem ele iniciou essa aventura, morreu pouco depois (não por suicídio, mas num desastre de avioneta) e o pesadelo regressou, ainda mais negro. Foram precisos anos para que Ozzy voltasse a cantar sobre suicídios, mortes, missas negras ou pesadelos espectrais mas completamente limpo de álcool e drogas (como agora o vimos) e feliz por isso. Um músico, já não um “zombie”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Suicídios, há-os de toda a espécie. Políticos, filosóficos, jornalísticos, poéticos, metafóricos, reais de carne e sangue. Ainda há poucos dias, num concerto memorável em Lisboa, o britânico Ozzy Osbourne (voz dos Black Sabbath, que antes dele disseram “adeus” definitivo aos palcos em 2017) cantou Suicide solution, um vórtice de destruição pelo álcool com o suicídio como “única saída”. Um sentimento real? Pelo contrário. No momento em que o gravou pela primeira vez, em 1980, no disco Blizzard of Ozz, Ozzy estava em maré de renascimento, no início de uma carreira a solo após ter sido despedido da banda (onde tinham receio de que, a continuar a afogar-se em álcool e drogas, acabasse por matar-se) e a canção, se tinha algo de autobiográfico, podia ser ouvida mais como remoque irónico. Azar: o jovem guitarrista Randy Rhoads, com quem ele iniciou essa aventura, morreu pouco depois (não por suicídio, mas num desastre de avioneta) e o pesadelo regressou, ainda mais negro. Foram precisos anos para que Ozzy voltasse a cantar sobre suicídios, mortes, missas negras ou pesadelos espectrais mas completamente limpo de álcool e drogas (como agora o vimos) e feliz por isso. Um músico, já não um “zombie”.
Mas porquê falar de suicídio agora? Porque hoje, 5 de Julho, vão ser lançados (na Fnac Almada, às 18h30) dois livros do publicista, ficcionista e bibliófilo Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949), um dos quais foi acusado de apelar ao suicídio e outro que é visto como um panegírico aos valores que viriam a ser depois abraçados de forma propagandística pelo Estado Novo. Editados pela Guerra & Paz, que tem vindo a reeditar, com assinalável mérito, várias obras clássicas da literatura portuguesa e universal, Palavras Cínicas (1905) e Porque Me Orgulho de Ser Português (1926) ganham em ser lidos de uma só vez, sequencialmente e em paralelo, porque revelam duas facetas do escritor que são também facetas aplicáveis à existência humana, sem rosto definido: a descrença total e a crença absoluta, extremos sem lugar a zonas de sombra ou dúvida. Da primeira fase, quando Forjaz de Sampaio se iniciou como jornalista n’A Lucta, apadrinhado por Fialho de Almeida, há vários títulos: Crónicas Imorais (1909), Lisboa Trágica (1910), Prosa Vil (1911) ou Vidas Sombrias (1917). Mas foi em Palavras Cínicas que se concentraram as atenções, não só por ter sido um dos livros mais vendidos do século XX (46 edições ainda em vida do autor) como pelo desassombro e acutilância das duras palavras que lhe dão corpo. Ele próprio escreveu, no prefácio à sexta edição: “Mudei acaso de ideias? Não. Pelo contrário. (…) Eu não mudei porque a Vida não mudou. O Homem é sempre o mesmo miserável, a Vida o mesmo ignóbil fardo que cada um trata de conduzir da maneira que lhe pese menos. (…) Dizem finalmente que eu aconselho a Morte. É verdade. Mas somente aos que não sabem ou não podem triunfar da Vida.” Mas esse triunfo seria também, não fossem cínicas tais palavras, o triunfo dos canalhas. E numa das oito cartas que compõem o livro sublinha que a vida é uma canalhice, uma farsa, “uma luta brutal” (cita Turguéniev).
Não estaria só, neste olhar sobre o mundo. Mais tarde, na vertigem sangrenta que emerge do evoluir da “Ode Marítima” (in ”, Orpheu 2, Abril 1915), Álvaro de Campos/Fernando Pessoa escreve: “Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário,/ Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum panteísmo de sangue,/ Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa”. E José de Almada-Negreiros, na sua “Cena do Ódio” (na malograda terceira Orpheu, em 1916), apontava o dedo a tudo: “Ora bolas para os sábios e pensadores! Ora bolas p’ra todas as épocas e todas as idades!/ Bolas p’r’ós homens de todos os tempos,/ e p’r’á intrujice da Civilização e da Cultura!” Era o “ódio” de Almada, em 1916.
Dez anos passados, Forjaz de Sampaio escreveu, “à luz amiga do azeite da Pátria”, uma glorificação de Portugal no seu todo, inspirado no ufanismo brasileiro de Afonso Celso (que ele, aliás, cita no livro). Isto porque, escreve, “sobravam os livros derrotistas, sem fé nem lei, abastardantes de sentimentos altos e profícuos.” E assim, da “pátria, sempre ditosa e amada”, exalta os heróis, o povo, os costumes, tudo, com Os Lusíadas de Camões por mote e a fé inabalável em Portugal por guia. Suicídios? Ora adeus! “Quem não crê não consegue”, escreve ele. E é muito instrutivo lê-lo agora, procurando-lhe épocas e contextos. Porque nem a humanidade é tão má como ele escreveu antes, nem Portugal tão bom como ditou depois.