O mundo, num retrato sem reconciliação
A nova exposição de José Pedro Cortes pode ser descrita como um espelho do mundo em que vivemos e um oásis que resiste no interior desse mesmo mundo.
Em Um Realismo Necessário, no Museu do Chiado, com a curadoria de Nuno Crespo (crítico no Ípsilon), José Pedro Cortes regressa ao seu arquivo para mostrar trabalhos de tempos e lugares diferentes. Tal como em Planta Espelho, em Janeiro, na galeria Francisco Fino, repete-se um gesto que se declina em dois momentos – um olhar sobre as imagens e um pensar que as “coloca no espaço” – mas, agora, com outra intensidade em termos expositivos. José Pedro Cortes parece expandir e problematizar, de modo mais assertivo e abrangente, a sua relação, enquanto artista, com a realidade, envolvendo o espectador nas questões que as fotografias levantam. É como se este não pudesse deixar de as escutar. Assim, o que significa, nesta exposição, o realismo? Uma deificação do mundo como ele é? Uma apologia da necessidade? Ou, pelo contrário, uma interrogação dirigida ao mundo, uma atenção sensível àquilo que o constitui?
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Em Um Realismo Necessário, no Museu do Chiado, com a curadoria de Nuno Crespo (crítico no Ípsilon), José Pedro Cortes regressa ao seu arquivo para mostrar trabalhos de tempos e lugares diferentes. Tal como em Planta Espelho, em Janeiro, na galeria Francisco Fino, repete-se um gesto que se declina em dois momentos – um olhar sobre as imagens e um pensar que as “coloca no espaço” – mas, agora, com outra intensidade em termos expositivos. José Pedro Cortes parece expandir e problematizar, de modo mais assertivo e abrangente, a sua relação, enquanto artista, com a realidade, envolvendo o espectador nas questões que as fotografias levantam. É como se este não pudesse deixar de as escutar. Assim, o que significa, nesta exposição, o realismo? Uma deificação do mundo como ele é? Uma apologia da necessidade? Ou, pelo contrário, uma interrogação dirigida ao mundo, uma atenção sensível àquilo que o constitui?
À entrada da exposição, vê-se ao, fundo de um longo corredor, o rosto de uma mulher jovem. Com um desconforto digno, a mão a segurar a cabeça, olha-nos pelo enquadramento de José Pedro Cortes; um retrato que nos recebe e nos põe à distância. Pese embora a reserva, a curiosidade suscita o movimento de aproximação, mas, à esquerda, eis que se anima outra fotografia. A da dobra que se desenha na perna de uma mulher, a assinalar, enfim, a abertura de Um Realismo Necessário. Mais do que duas entradas da exposição, este par de imagens sintetiza dois aspectos nucleares na abordagem de Cortes: a relação que as fotografias criam entre si no espaço e a importância que o artista consagra à experiência visual do mundo. É à volta de ambos que a exposição se dá a ver, reunindo escalas, planos, motivos ou, e sem pretender ferir a especificidade material dos trabalhos, melodias, sons, acentos, desacordes.
Cada sala parece corresponder a uma constelação específica que dialoga com a seguinte, não apenas em termos espaciais, mas, também, na memória de quem vê. Na primeira sala, assomam temas que se repetirão: detalhes de corpos humanos, a relação destes com os objectos, o convívio entre pessoas, a abstracção das superfícies, as marcas da construção do artifício humano sobre a Terra, a relação entre o mundo feito pelo homem e o mundo natural. José Pedro Cortes não nivela fenómenos ou realidades com a fotografia, não dissolve seres e coisas na produção de imagens.
Dá-nos um retrato que fez do mundo, um mundo que compreende uma pluralidade de fenómenos e experiências e que partilha. Exorta-nos a prestar a atenção a uma planta (numa das fotografias mais comovente da exposição), aos nossos dedos, aos gestos que dão sentidos às relações humanas, à paisagem que alteramos e, por vezes, destruímos. No seu olhar mediado pela máquina, há ironia, dúvida, espanto, encantamento, sentimentos e sensações que provém de uma sensibilidade aguçada, sempre desperta. É essa sensibilidade que José Pedro Cortes comunica, inevitavelmente, ao visitante. Acredita que também este pode olhar, de outro modo, para uma mão que repousa sobre um volante de um automóvel, para as ruas que se cruzam numa cidade ao fim de uma noite de Verão, para o reflexo de uma luz, para a presença banal do cimento, para a posição do corpo de alguém que espera ou olha por uma janela. Este realismo não se confunde com uma celebração da realidade ou com qualquer tipo de escapismo ou esteticismo.
As imagens nascem de uma suspensão de fluxo vivo da vida, do seu instante, da sua contingência. Capturadas pela objectiva, são-nos devolvidas para fazerem parte de mundo do qual foram retiradas. De um mundo que José Pedro Cortes habita, mas ao qual não se acomoda e, no entanto, do qual não escapa. Faz parte dele, é dele e, em grande medida, também é nosso. É o que nos dizem os retratos das mulheres, cujos sorrisos não se se abrem, mas nos quais se pressentem corações fortes (na penúltima sala, numa galeria em que cada retrato individual aponta para a existência de vidas individuais), as fotografias de objectos quebrados ou abandonados pelos homens ou de fotografias de fotografias publicadas numa revista.
Este retrato do mundo, de um realismo necessário que, como diz José Pedro Cortes na entrevista a Nuno Crespo no livro da exposição, tem a ver com a organização das próprias imagens e é o espelho do nosso tempo, é, também, parafraseando uma pensadora falecida em 1975, um oásis no interior das condições do mundo presente. Como devia ser grande parte da arte.