A “pós-verdade” e a Sociologia
Tal como o bom jornalismo procura a verdade dos factos, a boa sociologia exige trabalho de investigação.
Se a “pós-verdade” se alimenta da indiferença perante os factos, menosprezando a realidade e o atrito da própria vida, impõe-se, quanto antes, debatê-la e compreendê-la, traçando a sua genealogia, as suas fontes, a sua história e a sua contextualização no seio das relações de dominação contemporâneas. Essa será a grande tarefa do X Congresso Português de Sociologia, organizado pela Associação Portuguesa de Sociologia e que ocorrerá na Covilhã, na Universidade da Beira Interior, entre 10 e 12 de julho, sob o lema: “Na era da “pós-verdade”? Esfera Pública, cidadania e qualidade da democracia no Portugal Contemporâneo”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Se a “pós-verdade” se alimenta da indiferença perante os factos, menosprezando a realidade e o atrito da própria vida, impõe-se, quanto antes, debatê-la e compreendê-la, traçando a sua genealogia, as suas fontes, a sua história e a sua contextualização no seio das relações de dominação contemporâneas. Essa será a grande tarefa do X Congresso Português de Sociologia, organizado pela Associação Portuguesa de Sociologia e que ocorrerá na Covilhã, na Universidade da Beira Interior, entre 10 e 12 de julho, sob o lema: “Na era da “pós-verdade”? Esfera Pública, cidadania e qualidade da democracia no Portugal Contemporâneo”.
Se há algo que este espírito do tempo transporta, ele reside, sem dúvida, numa generalizada amnésia sobre as relações de poder e uma grande dificuldade em fazer a questão: a quem interessa criar e disseminar a crença de que a verdade tem de acomodar-se às nossas opiniões e emoções? A quem interessa que o desconforto provocado pela irrupção do novo e do diferente provoque tamanha irritação que nos fechemos numa bolha cognitiva tal que, mesmo perante informação baseada em evidências razoáveis, tendemos a reforçar, ainda mais, as nossas visões do mundo iniciais? A quem interessa difundir um esquema de “viés de confirmação”, selecionando, na busca da “verdade”, os factos “desconfortáveis” e escolhendo, à medida, os “factos alternativos” que reforçam as nossas crenças?
A crença de que não mais existem factos, ou de que para cada facto há um outro alternativo e concorrente, substituiu a realidade pelo impacto emocional das narrativas e celebra o estado narcótico permanente do espetáculo e da performance. Em suma, tudo se resumiria a uma sentença: nada é verdadeiro e tudo é possível.
Poder-se-á objetar que dificilmente encontraremos elementos novos nesta descrição. Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro, nas páginas do PÚBLICO, mostraram como, desde há várias décadas, governos, exércitos de relações públicas e empresas aperfeiçoam dispositivos de fabricação de factos através do complexo mediático-publicitário, aprimorando artes de persuasão e engenharias de consentimento, nas mãos de um pequeno “governo invisível” de spin doctors e relações públicas que aperfeiçoaram a “arte” de “plantar” factos” e de lançar a dúvida (por exemplo, sobre os malefícios do tabaco ou sobre a responsabilidade humana nas alterações climáticas). Não desconhecemos, também, que Trump ou o “Brexit” são epifenómenos desta galopante tendência e não os seus demiurgos originais. Mas seria ingénuo ignorar que a eles se somam Salvini, Orbán, Kurz, Morawiecki ou até o respeitável Seehofer e que a agenda da extrema-direita, construída minuciosamente numa teia de artefactos em que o desespero, o medo da incerteza e da desclassificação social imperam, conquista hoje uma centralidade inaudita.
O ciberespaço e as redes sociais ampliam este espírito, frustrando as esperanças emancipatórias da sociedade da informação em rede, que diluiria as distâncias entre emissores e recetores, transformando todos e cada um/a em produtores ativos de conhecimento. Ora, num feixe de indivíduos hiperconectados, os vínculos de pertença parecem enfraquecidos e, no pulsar da individualização expressiva, os espaços coletivos não forjam programas e projetos coerentes e militantes, antes estimulam a narrativa e a apresentação de si, em círculos de pares que preferem a “Universidade do Google” à procura crítica de fontes credíveis. Neste campo minado, medra o “raciocínio motivado” que considera a “verdade” como sendo sempre subordinado ao ponto de vista pessoal. Da sociedade em rede chega-se ao fechamento em rede e à produção massiva de subjetividades controladas e socialmente conformes, sem pingo de rebeldia.
Tal como o bom jornalismo procura a verdade dos factos, a boa sociologia exige trabalho de investigação, desconstrução e indagação para construir uma facticidade, ainda que provisória e sujeita a permanente verificação. Se a sociologia pode ser definida como a tentativa de compreender a lógica das práticas sociais dos agentes, incorporando o sentido que eles próprios lhes conferem, então o X Congresso Português de Sociologia constituirá certamente um momento memorável desse esforço coletivo em prol de uma esfera pública aberta, crítica e racional. Presidente da Associação Portuguesa de Sociologia
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico?