Nico, a busca por um lugar
Para sempre na sombra dos Velvet Underground, Nico assinou em The Marble Index, 1968, um disco que permanece uma obra singular e que ilustra a sua deslocação permanente.
Nico somente cantou em três músicas dos Velvet Underground. O resto do tempo em que pertenceu enganadoramente à formação alimentada pelo amor/ódio destilado entre Lou Reed e John Cale, esse tempo passou-o a tocar pandeireta. Com a mesma pertinência musical do que um papel de parede. Nico era um elemento decorativo no fundo dos Velvet Underground, um apêndice forçado por Andy Warhol e que a banda apenas terá tolerado para se manter sob as boas graças de Warhol – e porque tremiam as pernas a Lou quando ela estava por perto.
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Nico somente cantou em três músicas dos Velvet Underground. O resto do tempo em que pertenceu enganadoramente à formação alimentada pelo amor/ódio destilado entre Lou Reed e John Cale, esse tempo passou-o a tocar pandeireta. Com a mesma pertinência musical do que um papel de parede. Nico era um elemento decorativo no fundo dos Velvet Underground, um apêndice forçado por Andy Warhol e que a banda apenas terá tolerado para se manter sob as boas graças de Warhol – e porque tremiam as pernas a Lou quando ela estava por perto.
E é por isso que a ouvimos dizer, pela boca da actriz Trine Dyrholm, em Nico, 1988, que o seu papel nos Velvet não terá sido escandalosamente diferente dos seus tempos de modelo: o papel que lhe cabia era o de ser uma mulher bonita a quem era pedido apenas que estivesse. Só que as três canções que a alemã cantou em The Velvet Underground & Nico chamam-se Femme fatale, All tomorrow’s parties e I’ll be your mirror. E isso muda tudo. Para papel de parede, tem demasiada vida e é demasiado presente. Porque não será fácil imaginar o que seriam estas canções sem aquela voz sonâmbula, mal desperta da cama, num torpor narcótico. Nico cantava como quem tinha acabado de encher o corpo de sexo, de drogas ou das duas coisas em simultâneo. As diminutas qualidades musicais da sua voz eram compensadas por este espantoso poder sugestivo.
Ainda assim, The Velvet Underground and Nico ostentava já no título a clarificação imediata exigida por Lou Reed – eram eles mais ela; Nico era uma convidada, um corpo estranho ao grupo, alguém cujo momentâneo caminho paralelo não era crucial nem contribuía para a identidade da banda mais definidora do estado vanguardista a que o rock era exposto na downtown nova-iorquina. Nico emprestava uma vaga sombra de uma pop clássica de girl group às canções frequentemente ácidas dos Velvet, mas nem isso havia de garantir a sua sobrevivência artística no ensemble de Reed, Cale, Moe Tucker e Sterling Morrison – no fundo, a banda que Warhol tinha sonhado como altar para a voz e sobretudo a presença magnética de Nico em cima de um palco.
Feitas as contas, nem Cale sobreviveu nos Velvet à relação de tensão permanente que foi mantendo com Reed. E o líder incontestado do grupo terá – de acordo com aquilo que o galês definiu enquanto personalidade pouco “conflituosa”, em declarações à revista Mojo – enviado os outros dois Velvet para despedirem o homem que trazia a insólita viola d’arco para uma formação de perfil rock. Cale curou essa rejeição e afogou a mágoa do despedimento não num bar (bom, não quer dizer que não tenha acontecido), mas ao atirar-se de cabeça para o posto de produtor. E fê-lo ao aceitar dirigir as sessões de The Marble Index, o segundo álbum a solo de Nico. Antes dos Stooges, de Nick Drake ou dos Modern Lovers, gente com quem Cale sedimentou a sua reputação de homem de bastidores, havia de ser a cantora/modelo alemã a dar-lhe a primeira oportunidade para explorar os seus dotes de orquestrador e director musical.
The Marble Index mantém-se, até hoje, como o grande feito artístico de Nico em causa própria. Em 2013, em declarações à Uncut, John Cale dir-se-ia crente de que “Nico via The Marble Index como uma possibilidade de ser levada a sério, algo que ela desejava, e para ser conhecida por algo mais do que a sua beleza”. A vida de Nico, e que o filme de Susanna Nicchiarelli também documenta, havia de ser definida por esse braço-de-ferro constante com a imagem fixada em 1967, de uma misteriosa mulher que serpenteava por entre os músicos e os hipnotizava, fazendo tombar de amores Lou Reed, Bob Dylan, Iggy Pop ou Brian Jones, tentando superar a sua dimensão iconográfica.
Ora aquilo que continua a ouvir-se em The Marble Index é a busca sôfrega pela relevância artística. E é também a invenção de uma sonoridade para Nico. Desde logo, aspecto central, com a incorporação de um harmonium como instrumento de adopção da cantora e prontamente elevado a epicentro da sua música. E era isso que significava, então, The Marble Index (1968): no disco de estreia, Chelsea Girl (1967), dava voz a temas de Bob Dylan, Tim Hardin, Cale, Reed e Jackson Browne. Apesar das ajudas em estúdio dos Velvet Underground, Nico era ainda, nessa altura, quem os outros queriam que ela fosse. Em The Marble Index as autorias são suas – músicas e letras. É ela quem manda.
“Não era música folk, não era rock e seguramente não era pop”, diz Cale do material desse álbum singular, que antecipava em décadas uma ideia de folk adulterada pelo aventureirismo sónico. “Não havia pontos de referência fáceis. Não tinha nada em comum com tudo o resto.” E talvez por isso permaneça não apenas o álbum mais acabado e perfeito de Nico, mas igualmente aquele que de onde emana uma maior verdade relativamente à sua autora. Se a busca de Nico por um lugar nunca teve fim, é aqui que essa ausência de lugar se torna mais vívida e consequente. Nico esteve sempre deslocada. É possível que essa fosse a sua natureza; foi por ventura o seu maior atributo.