No limbo do disco rígido e do tempo
Pilar del Río escreve sobre "a surpresa e a emoção", "a ansiedade e a alegria", que sentiu ao encontrar este inédito do marido, o escritor José Saramago.
Assim é a história: fevereiro de 2018, Lanzarote, Espanha. O poeta e ensaísta Fernando Gómez Aguilera, autor de José Saramago nas suas palavras e comissário da exposição A Consistência dos Sonhos, ultima um volume com as conferências e discursos pronunciados por José Saramago em diferentes países e datas, alguns publicados, outros conservados em papel, outros arquivados digitalmente.
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Assim é a história: fevereiro de 2018, Lanzarote, Espanha. O poeta e ensaísta Fernando Gómez Aguilera, autor de José Saramago nas suas palavras e comissário da exposição A Consistência dos Sonhos, ultima um volume com as conferências e discursos pronunciados por José Saramago em diferentes países e datas, alguns publicados, outros conservados em papel, outros arquivados digitalmente.
No processo de pesquisa foi necessário rastrear com vontade detectivesca os diferentes computadores que José Saramago utilizou ao longo da sua vida digital, desde História do Cerco de Lisboa até Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, estudando os arquivos que o escritor organizou de forma precisa.
Um deles, alojado num computador sem uso desde o arranque do milénio, intitula-se "Cadernos", nome que, tanto para Fernando Gómez Aguilera como para quem escreve este texto, acolheria livros acabados e publicados, os cinco volumes de Cadernos de Lanzarote, imprescindíveis neste trabalho de organização das conferências e discursos, manejados até aí nas suas edições em papel.
Por esta razão, o arquivo digital "Cadernos" permanecia tal como o autor o havia criado, sem que nenhuma outra mão lhe tivesse tocado. Imaginem a surpresa quando a vontade investigadora fez premir a opção "Abrir" e apareceu com todas as suas letras – a fantasia fez-me ver o título do livro a piscar e a cores, embora saiba que não é verdade – Cadernos 6, na ordem lógica pela qual José Saramago arquivou os diários, começando pelo primeiro e terminando nesse, o sexto. "Seis? Como é possível, se apenas há cinco volumes?", foram as absurdas perguntas lançadas ao ar antes de começar a ler sem respirar, nem falar, nem ver para lá do ecrã, que sendo-o era também voz e narrava um tempo que se fazia presente ao manifestar-se assim, nessa noite, nessa casa de Lanzarote, ali, no que até esse momento era silêncio.
Não será necessário que descreva a surpresa e a emoção, o tempo detido, a ansiedade e a alegria, a nostalgia, o peso e uma leveza que rompiam todas as leis do espaço e do tempo. Eram dias de há vinte anos, eram dias de hoje. O autor dizendo-se de novo em Lanzarote, as palavras correndo aos borbotões, mês a mês, um ano inteiro, esse ano e justamente agora. Era fevereiro de 2018 quando o livro abandonou o limbo do disco duro e se fez uma preciosa promessa no mundo dos livros. Em outubro será uma realidade, em português e espanhol. Nós, os leitores, estamos de parabéns.
Tradução de Sérgio Machado Letria segundo o novo acordo ortográfico