Fisco abre 120 processos a bancos por falhas nos dados sobre offshores
Atrasos e omissões levam administração fiscal a actuar. Muitos bancos entregaram declarações de substituição nos últimos meses. Coimas serão agravadas. Autoridade tributária quer conhecer números que o Banco de Portugal se recusou a entregar à IGF.
A administração tributária tem em marcha mais de uma centena de processos para aplicar coimas a bancos por causa de erros encontrados nas declarações anuais onde são indicadas as transferências realizadas pelos clientes para contas bancárias sediadas em paraísos fiscais.
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A administração tributária tem em marcha mais de uma centena de processos para aplicar coimas a bancos por causa de erros encontrados nas declarações anuais onde são indicadas as transferências realizadas pelos clientes para contas bancárias sediadas em paraísos fiscais.
Ao todo, já foram levantados este ano 122 autos de notícia, um número expressivo que contrasta com os nove desencadeados em 2017 pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) relativamente a cinco entidades, todas elas fiscalizadas pela Unidade dos Grandes Contribuintes.
O prazo para as sociedades financeiras, instituições de crédito e prestadores de serviços de pagamento submeterem no Portal das Finanças as declarações sobre os fluxos de capital enviados para offshores ao longo de 2017 terminou no final de Março de 2018. Depois dessa data, o fisco recebeu uma grande quantidade de ficheiros de substituição onde os bancos corrigiram declarações de anos anteriores, dando a conhecer, nalguns casos, novas operações bancárias omitidas inicialmente.
Ao compararem os ficheiros antigos com os novos, os serviços da AT, além de encontrarem essas transferências omissas, verificaram que os primeiros documentos tinham outros dados incompletos ou incorrectos. E somando isso ao facto de se terem registado atrasos declarativos, os autos de notícia ultrapassam a centena.
Informar o DIAP
Não é ainda claro se algumas das novas declarações dizem respeito a transferências que se cruzam com o “apagão” de dados da base central do fisco (2011 a 2014). Há, no entanto, um dado que se retira das estatísticas das transferências offshore que ontem foram actualizadas no Portal das Finanças: o fisco reviu em alta os valores de três anos – 2014, 2015 e 2016 – na ordem dos 2500 milhões de euros.
Apesar disso, o PÚBLICO sabe que na AT, liderada por Helena Borges, está a ser equacionada a possibilidade de fazer chegar ao Ministério Público informação sobre estas omissões, precisamente por estar a correr no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa, em colaboração com a PJ, o inquérito ao “apagão” de dados de 10.000 milhões de euros da base central de dados do fisco.
Certo, para já, é que o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, deu orientação para que os serviços de inspecção do fisco dêem prioridade ao apuramento dos factos tributários relacionados com duas situações: as transferências inicialmente omitidas nas declarações e as operações alvo de declarações de substituição, caso haja indícios de fraude e evasão.
O PÚBLICO teve acesso a um despacho que circulou até à autoridade tributária, onde Mendonça Mendes determina que os serviços do fisco devem descobrir “em que circunstâncias se verificaram aquelas omissões, inexactidões ou atrasos”.
Cada banco submete anualmente no Portal das Finanças uma declaração (a Modelo 38) para dar conta do conjunto dos fluxos para offshores ocorridos no ano anterior. Cada um dos 122 autos de notícia levantados pela AT corresponde a uma declaração onde foram identificadas falhas, mas isso não quer dizer que em causa estejam exactamente 122 instituições de crédito, sociedades financeiras e outras entidades que prestam serviços de pagamento, porque haverá uma sobreposição de entidades, uma vez que as declarações de substituição dizem respeito a mais do que um ano.
Por cada contra-ordenação, e se estiverem em causa apenas omissões e inexactidões numa declaração em que não haja imposto a liquidar, um banco será punido, no máximo, com uma coima de 5625 euros. A Lei Geral Tributária prevê coimas de 375 a 22.500 euros, mas reduz a sanção a um quarto do valor nas situações em que não há imposto a pagar ao fisco. Quando os bancos se atrasam ou não apresentaram declarações, o limite máximo de uma coima é de 3750 euros. Neste cenário, os valores das sanções parecem ser pouco dissuasores do incumprimento, tendo em conta a dimensão de muitas das instituições financeiras que têm de informar a AT destes dados. Algo que já se tornara visível no caso do “apagão”.
O Governo quer agora agravar o quadro sancionatório. E no mesmo despacho onde pediu que se esclarecessem as omissões, Mendonça Mendes pediu que a AT estude propostas para avançar com uma alteração legislativa. Em cima da mesa está, por exemplo, passar a definir a coima “em função do volume de negócios” dos bancos.
Carta a Carlos Costa
Quando o fisco recebe a informação das transferências para offshores, uma das dificuldades que se coloca é não poder cruzar e validar essa informação com aquela que chega ao Banco de Portugal, que recebe dados sobre o mesmo universo de transferências.
Quando, há um ano, a Inspecção-Geral de Finanças (IGF) realizou a auditoria ao “apagão”, pediu ao supervisor bancário que lhe fosse enviada informação sobre o número e os montantes transferidos por cada banco para os vários paraísos fiscais ao longo dos anos em que se verificaram anomalias no tratamento dos ficheiros (de 2011 a 2014). Mas o banco central recusou dar esses dados, apenas enviando outra informação estatística agregada – a que já está disponível no site do banco central, acessível a qualquer cidadão com acesso à Internet.
Ao PÚBLICO, o supervisor bancário justificaria na altura que prestou a informação “que podia prestar nos limites dos diferentes deveres de segredo (de supervisão e estatístico) a que está vinculado”. Um assunto que agora volta a ganhar relevância.
O PÚBLICO sabe que a directora-geral da AT, Helena Borges, recebeu orientações das Finanças para escrever directamente ao governador Carlos Costa a pedir a colaboração do BdP para partilhar informação sobre os valores anuais das transferências – precisamente o tipo de dados que, há um ano, o supervisor recusou dar à IGF. Resta saber se essa colaboração, já sugerida há um ano pelos inspectores de Finanças, se concretiza ou se poderá nascer daqui um possível braço-de-ferro.