A jornada de Steinbeck pelos campos soviéticos
Em 1947 o Governo soviético acolheu a ideia do escritor norte-americano John Steinbeck de visitar a URSS, pondo entraves a que este fosse acompanhado por um fotógrafo. Mas o nome de Robert Capa acabou por se impor. Um ano depois, publicavam Um Diário Russo, uma longa reportagem jornalística que, sem preconceitos políticos, retrata a vida dos soviéticos num momento crucial da História
John Steinbeck e Robert Capa entram num bar em East 40th Street em Nova Iorque. Pode-se começar assim a contar esta história — a da viagem que levou o escritor e o fotógrafo a conhecerem de perto a União Soviética do pós-guerra, em 1947. Sentado à mesa de um bar, Steinbeck pensava no que haveria de fazer depois de ter escrito por quatro vezes uma peça, e de esta se ter “dissolvido e escorrido” por “entre os dedos”.
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John Steinbeck e Robert Capa entram num bar em East 40th Street em Nova Iorque. Pode-se começar assim a contar esta história — a da viagem que levou o escritor e o fotógrafo a conhecerem de perto a União Soviética do pós-guerra, em 1947. Sentado à mesa de um bar, Steinbeck pensava no que haveria de fazer depois de ter escrito por quatro vezes uma peça, e de esta se ter “dissolvido e escorrido” por “entre os dedos”.
Capa entrou no bar com um ar desconsolado depois de uma partida de póquer, em que pensava havia vários meses, se ter realizado. O seu livro tinha entrado em impressão e ele estava sem nada que fazer. Divagaram ambos sobre o estado do mundo e do jornalismo que se fazia, em como as notícias se tinham transformado em “matéria de opinião especializada”.
Andavam ambos deprimidos, não com as notícias que lhes chegavam mas com a forma como eram dadas. Interrogaram-se sobre o que haveria que pudessem ainda fazer. Pensaram que “todos os dias os jornais publicavam milhares de palavras sobre a Rússia”, e que tudo era escrito por pessoas que nunca lá tinham estado, e “cujas fontes não eram isentas de crítica”.
Com o barman sempre por perto, ocorreu-lhe que haveria na Rússia coisas sobre as quais ainda ninguém havia escrito, e que eram aquelas que mais lhes interessavam. “O que é que as pessoas vestem? O que é que comem ao jantar? Convivem? (...) Os russos têm certamente vida privada e sobre isso não sabíamos nada, porque ninguém escreveu nada sobre ela, e ninguém a fotografou.” O passo seguinte foi telefonarem a um jornalista do Herald Tribune e marcarem com ele um almoço para lhe apresentarem o projecto. Queriam ir sem preconceitos, e apenas registar aquilo que viam e ouviam sem fazerem comentários, sem tirarem conclusões sobre coisas de que não tinham conhecimento suficiente para julgar e, sobretudo, sem se irritarem com as já esperadas demoras da burocracia.
Os pedidos de vistos seguiram para Moscovo. Mas apenas o de Steinbeck veio, em tempo razoável, aprovado. No consulado da Rússia em Nova Iorque, o cônsul-geral disse a Steinbeck, justificando-se: “Concordamos que se trata de uma boa ideia, mas porque é que há-de levar um fotógrafo? Temos muitos fotógrafos na União Soviética.” Ao que John Steinbeck respondeu: “Mas não têm nenhum Capa.”
Houve da parte dos soviéticos alguma relutância em autorizar a entrada de um fotógrafo. Conta Steinbeck neste Um Diário Russo — recentemente por cá traduzido pela primeira vez e publicado pela editora Livros do Brasil — que o facto lhe pareceu estranho porque a censura de um regime pode controlar facilmente uma película fotográfica, mas não consegue controlar o que um observador guarda na cabeça. Para um pouco adiante explicar algo que se confirmou durante toda a viagem: “A máquina fotográfica é uma das armas modernas mais assustadoras, em particular para quem esteve na guerra, para quem foi bombardeado, porque na origem de um bombardeamento está invariavelmente uma fotografia.” Isto acontece porque na história da II Guerra, a câmara precedeu sempre a destruição. Por isso, um homem com uma câmara é suspeito e vigiado onde quer que esteja. Havia muitos anos que nenhum americano fotografava a União Soviética. Robert Capa regressou com cerca de quatro mil negativos, e Steinbeck com centenas de páginas de apontamentos.
A viagem
Depois de alguns percalços (Steinbeck caiu de uma janela), partiram rumo a Moscovo com treze volumes de bagagem (dez dos quais pertenciam a Capa), que incluía várias máquinas fotográficas, centenas de rolo de película, lâmpadas para disparar com flash, cabos eléctricos, e muito outro material.
A rota para Moscovo incluía escala em Estocolmo, Helsínquia e Leninegrado. Neste seu diário, Steinbeck não se limitou a descrever apenas a viagem — numa espécie de homenagem ao companheiro, foi deixando considerações cúmplices, por vezes irónicas, quase sempre bem-humoradas, sobre o seu estado anímico e a sua personalidade. Como as que escreveu sobre o primeiro dos contratempos surgidos na viagem, um avião russo com o pneu furado e que os obrigou a passar a noite na capital finlandesa, tendo Robert Capa de se separar, muito contrariado, da sua bagagem: “Normalmente alegre e bem-disposto, Capa transforma-se num tirano e num angustiado quando estão em causa as suas máquinas fotográficas.”
A mestria da prosa escorreita e assertiva de Steinbeck (Prémio Nobel de Literatura em 1962), com a sua tão característica atenção ao pormenor, é bem visível neste livro, como na passagem em que descreve o que via quando o voo se aproximava da sua primeira paragem em território soviético: “Do ar, as cicatrizes da guerra prolongada eram visíveis no solo — as trincheiras, a terra retalhada, os buracos abertos pelas bombas, que agora começavam a cobrir-se de erva. E à medida que nos aproximávamos de Leninegrado as cicatrizes iam-se tornando mais profundas, as trincheiras mais frequentes. As casas rurais ardidas, de paredes negras ainda em pé, polvilhavam a paisagem. Algumas zonas onde se haviam travado combates ferozes tinham crateras e crostas como a face da lua.”
Steinbeck — que estivera antes em Moscovo, em 1936 — descreve e compara a capital soviética, fala das suas ruas limpas e alcatroadas, e que antes eram sujas e lamacentas, das centenas de novos edifícios de apartamentos, dos quarteirões de “bairros estreitos e sujos” que tinham desaparecido, das novas lojas cheias de gente, “gente que não comprava”. Repara ainda nos poucos estragos causados pelas bombas, pois a defesa anti-aérea contra os bombardeamentos feitos pelos alemães foi bastante eficaz. Fala ainda do Museu Lenine, e mostra-se impressionado com as salas consecutivas cheias com pedaços da vida de um homem. “Lenine não deve ter deitado nada fora.”
Visita a Estalinegrado
É quando chegam aos campos agrícolas ucranianos (e mais tarde pelos campos do Cáucaso) que a escrita de Steinbeck mais se empolga, se embrenha nas descrições da vida campesina, nas suas tarefas diárias, na rudeza e na dureza do trabalho no campo. O autor de As Vinhas da Ira, a sua obra-prima — publicada poucos anos antes desta viagem — volta a entusiasmar-se com as tarefas agrícolas, com o modo de organização do trabalho, com a expressão do sofrimento e da alegria. “Dividiam-se em batalhões que competiam entre si, com cada grupo a tentar colher mais pepinos do que o outro. As mulheres estendiam-se em filas pelos campos, rindo e cantando, e gritando umas às outras. Vestiam saia comprida, blusa e lenço na cabeça, e ninguém andava calçado, porque os sapatos ainda são um bem demasiado precioso para ser usado nos campos. As crianças andavam apenas de calças, e os seus corpinhos começavam a ficar queimados pelo sol estival.”
Em Um Diário Russo aquilo que foi vivido, presenciado e fotografado, tem um papel primordial. Impressionam também as páginas da visita a Estalinegrado, à sua famosa fábrica de tractores, em que grandes pedaços de tanque alemães eram fundidos. Capa foi proibido de fotografar nesta fábrica.
Jonh Steinbeck e Robert Capa retrataram as vidas dos homens e mulheres soviéticos num momento em que lutavam, e se erguiam, da devastação deixada pela guerra. Um Diário Russo é um retrato único, e um clássico da reportagem jornalística que deixa de fora os estereótipos.