O órgão “único no mundo” de Santo António dos Portugueses

O novo cardeal português foi saudado por 2500 tubos de um órgão “único no mundo”. Ontem, na Igreja de Santo António dos Portugueses, de Roma, o bispo de Leiria-Fátima falou da importância do verbo tocar. Para ele, a música da Igreja deveria falar de comunicação, afecto, ternura e consolação.

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foto cedida pelo ipsar

O improviso do organista Giampaolo di Rosa no órgão de tubos da igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma, marca o momento da entrada processional dos celebrantes: jubilosos, intempestivos, como uma grande aclamação, os 2500 tubos soltam-se e enchem o espaço da bela nave, uma das jóias do barroco na cidade dos papas.

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O improviso do organista Giampaolo di Rosa no órgão de tubos da igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma, marca o momento da entrada processional dos celebrantes: jubilosos, intempestivos, como uma grande aclamação, os 2500 tubos soltam-se e enchem o espaço da bela nave, uma das jóias do barroco na cidade dos papas.

Esse início da missa que o novo cardeal português celebrou ontem em Roma não podia ser mais simbólico: enquanto António Marto, bispo de Leiria-Fátima, incensava o altar, as mãos do organista tocavam os cinco teclados da consola do órgão, enchendo de perfume sonoro o espaço de culto.

Tocar seria também o verbo que, na homilia, o novo cardeal usaria para falar do que deve ser a missão da Igreja Católica nos tempos do Papa Francisco. D. António Marto apareceu vestindo apenas um fato eclesiástico escuro. Na missa, usou apenas o solidéu de bispo, mas não a mitra. O barrete de cardeal, já avisara, só usará em Roma, quando tiver mesmo de ser.

Perante mais de uma centena de pessoas (incluindo dois bispos, uns vinte padres e a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, em representação do Governo português), o cardeal Marto referiu-se ao texto bíblico lido momentos antes para dizer que, tal como Jesus, os cristãos devem tocar e deixar-se tocar por todas as pessoas. “Tocar é uma experiência de comunicação, de afecto, de ternura e consolação. Tocar é aproximar-se do outro, com compaixão.”

Isto afirmava enquanto uma mulher entrava na igreja a pedir esmola. Mãos postas, dirigiu-se a duas ou três pessoas à entrada, sentou-se por uns momentos, voltou a sair. “Jesus toca a miséria humana, comunica a força revolucionária da ternura de Deus”, diria o cardeal, momentos depois. “Os que têm fé são chamados a testemunhar a ternura de Deus, o evangelho da alegria, da misericórdia, da compaixão e da paz.”

Um órgão “único no mundo”

De alegria falou todo o tempo o órgão da igreja, “único no mundo”, como diria o reitor do Instituto Português de Santo António de Roma (IPSAR), padre Agostinho Borges, que gere o espaço de culto. Os três improvisos de Giampaolo di Rosa (no início, no momento do ofertório e no final) pretendiam “criar formas musicais em tempo real”, dizia ao PÚBLICO o organista, no final da missa.

A ideia do órgão nasceu como forma de colocar a Igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma, no mapa cultural da capital italiana. O reitor falou com o organista Giampaolo di Rosa, que lhe recomendou Jean Guillou, o organista da igreja de Saint Eustache, em Paris. Assim nasceu um órgão de tubos que não é “uma massa sonora”, mas um instrumento com uma grande sonoridade. Para quem escuta, a sensação é de ouvir “como se fossem muitos solistas”, distribuídos pela nave central e pelas capelas laterais da igreja a cantar ou tocar. Uma espécie de surround instrumental de diferentes vozes e timbres, numa envolvência plena sem amplificação electrónica.

Agostinho Borges sente uma “alma de músico” a pulsar dentro de si. Desde criança que aprendeu a tocar – primeiro acordeão na sua aldeia, depois piano, no seminário. Em 1984, comprara em Paris o livro L’Orgue – Souvenir et Avenir (O órgão – memória e futuro), de Jean Guillou. Com todas estas coincidências, não hesitou a ir bater à porta do organista francês nascido em 1930, depois de receber a sugestão de Giampaolo di Rosa. Jean Guillou aceitou construir o desafio de construir um órgão de tubos diferente, quer pela sonoridade, quer pela própria beleza arquitectónica.

Os 2500 tubos, comandados em cinco teclados e uma pedaleira, distribuídos pela igreja, fazem o resto da extraordinária desta peça original. Os teclados – o baixo com o positivo e coral, o grande órgão, o expressivo, o solo e o echo e bombarda – têm cada um a sua configuração de sons e “timbres correspondentes a corpos fónicos distribuídos em toda a igreja”, explica Giampaolo di Rosa.

A ideia era que o instrumento não se limitasse a ser “mais um”, acrescenta o reitor, mas fosse algo marcante para a cidade e a música. E essa é a razão de, aos domingos ao final da tarde, a igreja se encher com portugueses e romanos, peregrinos e turistas que ali se sentam para escutar os concertos. Por ali já passaram ciclos integrais da obra de Bach para órgão (em 2010 e 2015) ou de Olivier Messiaen, por exemplo. Executados por Giampaolo di Rosa, que entretanto se tornou organista titular – e que também desempenha idêntico cargo na catedral de Vila Real – ou outros grandes nomes do órgão, como o próprio Jean Guillou, Daniel Roth, de Saint Sulpice (Paris), Winfried Boenig (da catedral de Colónia) ou Daniel Zaretski, da Universidade de São Petersburgo.

Neste domingo, às 18h30, haverá mais um dos concertos semanais previstos na programação: concerto para piano e órgão – Bach entre os teclados incluirá peças de Vivaldi, Bach e Marcello, tocadas por Giampaolo di Rosa. Em Janeiro último, Giampaolo di Rosa iniciou um ciclo de improviso sobre os textos dos 150 Salmos bíblicos. A programação é aberta, em função de cada tempo litúrgico, e já abrangeu, até agora, oito salmos. A música responde à linguagem de improvisação sobre o próprio texto do salmo bíblico.

A construção do órgão, concluída em 2008, mas cuja forma definitiva só há dois anos foi atingida, permitiu atrair muitos visitantes. Desse modo, as pessoas podem também apreciar e ficar a conhecer o rico património da igreja. “Esta igreja está aqui também em representação de Portugal” e, por isso, é importante que apareça como uma espécie de embaixada cultural do país, justifica Agostinho Borges.

Bibliotecas, leituras e património

Nascido em 1958 em Telões (Vila Pouca de Aguiar), Agostinho Borges foi com dez anos para o seminário menor de Vila Real. Dali, transitou para o seminário maior do Porto. Foi ordenado padre em 3 de Julho de 1983, faz terça-feira 35 anos. Logo depois, esteve um curto período em Paris a ajudar numa paróquia com muitos emigrantes portugueses.

“Mal sabia rezar a missa em português e fui dizê-la em francês”, recorda ao PÚBLICO. Regressado a Portugal, voltou por um ano, ao seminário menor, como prefeito, após o que foi de novo para a capital francesa estudar liturgia e acompanhar comunidades emigrantes. Finalmente, em 1994, durante o Verão, recebeu o convite para ir para Roma. Falou com o bispo e, embora a custo, disse que sim.

Hoje, não está arrependido e percebe-se que gosta do lugar. O seu cargo, no entanto, depende de nomeação política, já que o IPSAR é um instituto governamental, depois da nacionalização da igreja e dos seus anexos, em 1911. Normalmente, a embaixada de Portugal junto da Santa Sé apresenta ao Ministério dos Negócios Estrangeiros uma lista de três nomes possíveis. No caso de Agostinho Borges, a sua nomeação foi feita em 1995, depois da proposta do embaixador António Patrício.

Além da igreja, o IPSAR mantém residências para estudantes de Erasmus e jovens investigadores. Luciana Stegagnopicchio, catedrática de Língua e Literatura Portuguesa, doou ao instituto a sua biblioteca, que acabou agora de ser catalogada. Com 20 mil títulos, será a biblioteca mais especializada em literatura lusófona da capital italiana. E por ali passam também várias exposições temporárias, quer de artistas portugueses, quer de italianos.

Falando de livros, Agostinho Borges acrescenta a sua paixão por grandes autores portugueses: andou a reler a obra de Torga, espera fazer o mesmo com Camilo e Eça. “Miguel Torga era um homem do nosso tempo. Ainda vivi perto dele e acho que era alguém com um espírito insatisfeito, crítico, que não se deixou instalar nem comprar, sempre igual a si próprio. No modo de escrever, ele conta a vida de um povo, é quase uma escultura do quotidiano.”

Mas é na igreja que está o centro da acção do Instituto. Antão Martins de Chaves, bispo do Porto no século XV, comprou ali um terreno para construir uma capela que, depois de sucessivas peripécias, acabou naquilo que é hoje. Nela se destacam, a par dos riquíssimos mármores, obras como a tela de Antonio Aquilio, ou Antoniazzo Romano (segunda metade do séc. XV) que representa Nossa Senhora no trono com o Menino, ladeada por São Francisco de Assis e Santo António. Colocada no primeiro altar lateral, à esquerda, tem em frente outra obra marcante: uma estela funerária de 1806, de Antonio Canova, recordando o embaixador português na Santa Sé, Alexandre de Sousa Holstein, que morreu em Roma em 1803.