O giro dos astros, ou como do Universo se fez uma bola de anéis
A estrutura da esfera armilar tem origem numa visão geocêntrica do Universo, em que a Terra é o centro em torno do qual giram os planetas e as estrelas.
Muitos portugueses terão alguma ideia sobre ela. Não tanto porque a olharam enquanto era abanada a meio de um jogo de futebol, mas porque ainda miúdos terão aprendido que simboliza os “Descobrimentos” na bandeira nacional. Menos saberão que a presença desta bola amarela na bandeira é uma inovação republicana de 1910, que partiu de motivações políticas da altura; que foi depois mantida e utilizada como importante elemento propagandístico do Estado Novo. Mas o que é afinal uma esfera armilar?
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Muitos portugueses terão alguma ideia sobre ela. Não tanto porque a olharam enquanto era abanada a meio de um jogo de futebol, mas porque ainda miúdos terão aprendido que simboliza os “Descobrimentos” na bandeira nacional. Menos saberão que a presença desta bola amarela na bandeira é uma inovação republicana de 1910, que partiu de motivações políticas da altura; que foi depois mantida e utilizada como importante elemento propagandístico do Estado Novo. Mas o que é afinal uma esfera armilar?
Noutro tempo e noutro lugar – Florença há 500 anos – aparece pintada com destaque num fresco do famoso pintor Sandro Botticelli. O que teria de especial esta esfera de anéis metálicos para ser contemplada com tanta devoção? Para investigar o assunto temos de recuar até cerca de dois milénios e meio.
No antigo mundo grego, por volta do século V a.C., alguns filósofos olharam o céu e imaginaram círculos em torno dos quais os astros se moviam. Para eles o Sol mostrou-se dia após dia a seguir o seu percurso, ora aparecendo ora desaparecendo no horizonte, como se viajasse num invisível e imenso anel. Esta maneira de ver o céu era diferente de outras narrativas que personificavam em deuses os fenómenos celestes. As posições dos astros foram antes registadas de várias formas, como nas intermináveis tabelas babilónicas. Mas a geometria desta visão unificou os dados astronómicos numa única imagem sistemática do Universo. Isto deu uma precisão muito maior às medidas celestes, permitindo prever fenómenos nunca antes antecipados, como o caso dos eclipses solares. A esfera armilar é a incorporação desta visão astronómica do Universo.
A origem precisa da esfera perde-se no passado. Nenhum exemplar anterior ao século XV sobreviveu até hoje. Além disso, é difícil identificar possíveis referências em textos antigos, por ter tido muitos nomes, até na mesma língua, e por estes terem frequentemente outros sentidos. Uma das primeiras sugestões da existência da esfera armilar encontra-se em Timeu, influentíssima obra de Platão (século IV a.C.), figura central para a história do pensamento ocidental. Nesta obra, escrita em forma de diálogo, o filósofo descreve não menos do que a criação do Universo, composto de círculos por um deus-artesão, como uma esfera armilar. Por volta do século I a.C., a esfera já seria um instrumento pedagógico comum para aprender astronomia. A utilidade do instrumento seria notável, especialmente entre actividades para as quais a astronomia era fundamental, como eram o caso da agricultura, astrologia, cartografia, navegação, entre outras.
A estrutura da esfera armilar tem origem numa visão geocêntrica do Universo, em que a Terra é o centro em torno do qual giram os planetas e as estrelas. Apesar de agora sabermos que não é assim, essa visão aparente é tão útil que continua ainda hoje a utilizar-se como sistema de coordenadas celestes e para fins pedagógicos. Esta astronomia esférica encontrou no canónico Almagesto de Cláudio Ptolomeu (século II) a base sólida que serviu à prática da ciência dos astros durante quase 1500 anos.
Parte do mais vasto legado filosófico grego, a astronomia ptolemaica foi apropriada e desenvolvida pela civilização árabe a partir do século IX e, através dela, assimilada pela Europa latina a partir do século XII. A circulação deste conhecimento filosófico e científico, de longe protagonizado pela obra enciclopédica de Aristóteles (século IV a.C.), permitiu o currículo da nova universidade medieval, que se fundava nas sete artes liberais, de entre as quais a astronomia. Assim, a visão astronómica representada pela esfera armilar cresceu entre a sociedade culta, sobretudo através do influente Tratado da Esfera de João de Sacrobosco (século XIII), o manual básico para o ensino da ciência dos astros.
Além da sua popularidade entre os especialistas, esta ordem do Universo alcançou também um lugar importante na cultura cristã medieval. Para vários ramos e figuras influentes da cristandade, a visão esférica tendia a significar a perfeição e beleza matemática com que Deus tinha criado o Universo. Por volta de 1500, altura em que foi pintado o fresco de Botticelli com que começamos, o “livro da natureza”, ou seja, o Universo, estabelecia-se como alternativa ao livro da Bíblia como meio de acesso à revelação divina. Deus, à semelhança do deus-artesão de Platão, era então entendido como o artesão do mundo, uma imensa e perfeita máquina que reflectia a perfeição do seu criador.
A pintura de Botticelli representa Santo Agostinho (séculos IV-V), um dos mais influentes pensadores para a cultura ocidental. A sua obra foi fundamental na síntese entre cristianismo e platonismo, fusão que ganhou grande relevo no final do século XV com a tradução para latim de muitas obras de Platão e seus seguidores. A contemplação da esfera armilar por Agostinho compreende-se, assim, à luz desta relação íntima que a astronomia teve com o divino, e que através da esfera chegava a confundir-se com ele.
Como sabemos, nesta mesma altura, cerca de 1500, a esfera armilar tornou-se símbolo do rei D. Manuel I, marcando-a de tal forma um pouco por todo o lado que ainda hoje abunda aos nossos olhos. Esta apropriação transformou o símbolo e politizou-o de acordo com a ideologia manuelina e as circunstâncias históricas da altura, como foi o caso da expansão marítima portuguesa. Mas essa é uma história que não cabe aqui.
Esta série, às segundas-feiras, está a cargo do Projecto Medea-Chart do Centro Interuniversitário de História da Ciência e Tecnologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação