Não há milagres? (1)
Na nossa era secular, a linguagem universalmente credível é a da ciência e da técnica.
1. Falou-se durante muito tempo do milagre económico alemão. Quando se deseja criticar uma gestão económica e financeira diz-se: não há milagres! Em clima de religião barata vem o velho ditado: fia-te na Virgem e não corras! São apelos sensatos para que as iniciativas humanas sejam pensadas e planeadas a tempo, executadas com rigor. Não deixar as nossas decisões ao Deus dará, pois Ele ajuda quem se sabe ajudar. Afirmar que não há milagres nem sempre significa uma atitude ateísta ou negação da providência divina. Pode ser apenas respeito pela responsabilidade humana com uma conotação teológica: não invocar o Santo nome de Deus em vão.
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1. Falou-se durante muito tempo do milagre económico alemão. Quando se deseja criticar uma gestão económica e financeira diz-se: não há milagres! Em clima de religião barata vem o velho ditado: fia-te na Virgem e não corras! São apelos sensatos para que as iniciativas humanas sejam pensadas e planeadas a tempo, executadas com rigor. Não deixar as nossas decisões ao Deus dará, pois Ele ajuda quem se sabe ajudar. Afirmar que não há milagres nem sempre significa uma atitude ateísta ou negação da providência divina. Pode ser apenas respeito pela responsabilidade humana com uma conotação teológica: não invocar o Santo nome de Deus em vão.
Não é aconselhável dar demasiada importância à linguagem do quotidiano que, raramente, é fruto de grandes cogitações como, por exemplo, eu cá sou ateu graças a Deus. Usa-se o vocabulário mais disponível, marcado pelo contexto social e cultural de uma população. Há zonas do país nas quais um palavrão é, apenas, um recurso simples e rápido, para acabar com uma conversa que não leva a lado nenhum.
2. A oração, a promessa, a acção de graças e o milagre são a própria paisagem da religião, a não confundir com a beatice. Em alguns contextos, significa o próprio clima da interioridade que acompanha as transformações da vida espiritual. Em outros casos, são narrativas sociais, umas mais discretas, outras mais aparatosas e, até, exibicionistas, para dizer a fé de um grupo religioso, o sentido profundo da vida. Pede-se ao céu, a Deus e aos seus anjos e santos, que se lembrem de nós, que nos dêem a mão. A celebração da memória da fé dos antepassados é essencial. Nós fazemos parte da sua história e eles desejam fazer parte da nossa vida se a intensidade do nosso desejo pedir a sua intervenção.
Religião exterior e interior – salvo nos casos de hipocrisia – podem reforçar-se uma à outra. Como a sociedade muda, é normal que também sejam alteradas as suas representações.
Quer ao nível da religião popular e das suas expressões, quer no confronto com a Bíblia e com a prática de Jesus, a questão dos milagres é incontornável.
Numa era sacral, quando a imagem deste mundo dependia das representações sobrenaturais, negar a possibilidade do milagre era uma ofensa ao bom senso: se não é Deus a guiar a misteriosa marcha deste mundo, quem é? Os milagres e as relíquias milagrosas tornaram-se um vício abençoado.
Na nossa era secular, a linguagem universalmente credível é a da ciência e da técnica. As sucessivas revoluções industriais que elas possibilitam, para bem e para mal, são da responsabilidade humana. Pedir contas a Deus ou solicitar a sua intervenção não parece sensato.
Temos, no entanto, de não confundir religião com superstição. Como observa L. Wittgenstein, a fé religiosa e a superstição são muito diferentes. Uma resulta do medo e é uma espécie de falsa ciência. A outra é uma confiança [1].
Para tentar escapar às dificuldades que a própria noção de milagre implica, foi elaborada uma ideia mais “moderna” de milagre. Diz-se que há milagre quando um fenómeno não pode ser explicado por nenhuma ciência ou técnica disponíveis. Isto acontece, sobretudo, no campo da medicina. Para ter milagres verdadeiros, reais, capazes de levar santos aos altares, para canonizar vidas santas, é preciso a ocorrência de um acontecimento inexplicável pela ciência e pela técnica. Dado o seu carácter benéfico, só pode ser fruto da intervenção de Deus.
É esta noção de milagre que foi muito importante, sobretudo no século XIX, para distinguir sinais de santidade verdadeira de embustes devotos. Foi uma medida muito higiénica no campo religioso, uma forma de dizer que não vale tudo no campo devocional.
Há quem fale de milagres de primeira e milagres de segunda. Os de primeira são os que resistem a todos os testes. Os de segunda são as graças que enchem a literatura piedosa, muito distribuída em certos locais, destinadas a criar ambiente para o acontecimento dos milagres de primeira, capazes de levar um santo aos altares.
3. Em tudo isto, é esquecida a condição do desenvolvimento das ciências e das técnicas. Estão sempre em evolução. O que numa época se considerou uma ocorrência para além dos poderes da natureza, com o desenvolvimento posterior das ciências e técnicas, talvez possa vir a ser explicável. É verdade, mas continuamos a considerar, no mesmo plano, a misteriosa intervenção de Deus e as acções humanas. Um pouco de teologia negativa pode ajudar.
Quem lê o Novo Testamento ou participa nas celebrações eucarísticas não pode evitar a pergunta: será que Jesus fazia milagres ou são apenas histórias de uma era sacral para alimentar uma ilusão para os nossos dias? Se Jesus fez milagres, há dois mil anos, ainda deve ter a mesma bondade e o mesmo saber para as situações actuais. Como não gosta de fazer nada sozinho, é normal que associe os anjos e os santos – canonizados ou não – à sua vontade de fazer o bem, sobretudo nas situações mais aflitivas.
Para pensar isto com certa clareza, não se deve esquecer a história de Pascal. "Conta-se que, certo dia, Pascal se encontrou com um amigo num castelo, no cimo de uma colina. Após algum tempo de espera, o amigo chegou com o rosto desfigurado, a roupa rota e o corpo cheio de nódoas e feridas. – O que é que te aconteceu? – perguntou Pascal. – Não imaginas o milagre que Deus acaba de me fazer! – respondeu o amigo. Quando vinha para cá, o meu cavalo resvalou perto de uma ravina. Eu caí, fui rolando e resvalando, mas detive-me exactamente na borda do precipício. Imaginas? Que milagre Deus acaba de me fazer! Ao que Pascal retorquiu: E o milagre que Deus acaba de me fazer a mim? Ao vir para cá, nem sequer caí do cavalo!" [2].
Neste Domingo, o humor e a astúcia de S. Marcos [3], ao encaixar numa única narrativa dois milagres improváveis, obrigam-nos a pensar que a nossa maior cegueira, seja a que nível for, é a incapacidade renovada de não ver o que temos diante dos olhos. Gloriamo-nos, com razão, dos avanços da ciência, da indústria e dos seus progressos. Ao esquecer que tanto podem realizar o milagre da paz e do bem-estar, como provocar guerras em cadeia e a destruição, ficamos nas mãos dos donos deste mundo.
No Domingo que vem, até o próprio Jesus se espanta com tanta miopia.
[1] Cultura e Valor, Edições 70, 1980, pp. 107
[2] Ver, para todo este assunto, as observações de Ariel Ávarez Valdés in Bíblica n.º 352 (Maio-Junho 2014), pp. 99-104; ver também Miracle de Xavier Léon-Dufour, Dictionaire du Nouveau Testament, Seuil, 1975
[3] Mc 5, 21-43